E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Carta 18: Querido Pai Natal

Eu também acreditei no Pai Natal. Durante alguns poucos anos da minha vida o Natal teve esse mistério e essa magia vestida de vermelho.
Na noite de 24 para 25, eu deitava-me com a excitação normal da antecipação. Tinha já feito a carta com os pedidos ao Pai Natal e esperava o que ele considerasse pertinente oferecer-me pelo menos alguns. Tenho uma ideia vaga dos meus pedidos gerais. Uma boneca, um Lego... Lembro-me de um desejo muito específico: um frigorífico pequeno, uma perfeita miniatura. A porta abria-se e lá dentro havia prateleiras removíveis, um congelador cuja porta se abria, e um pacote de manteiga, um cesto com ovos, uma garrafa de leite... Era mágico e esteve exposto durante semanas na montra da loja do Gás Cidla. Eu passava por lá quase todos os dias, depois da escola. Nesse ano, lembro-me de ter dito à minha mãe que gostava que o Pai Natal me desse aquele frigorífico. Contava com a possibilidade de ele poder passar no buraco da chaminé, que era bastante estreito, mas que tinha o tamanho certo para deixar descer a caixa do embrulho.
As dimensões do buraco da chaminé já me tinham feito inquirir os meus pais quanto à possibilidade de o Pai Natal poder deixar embrulhos grandes na base do fogão. O meu pai, sempre pragmático, explicou que obviamente esses embrulhos nunca poderiam passar em tão exíguo espaço, pelo que eles ficavam atentos e abriam a porta das traseiras para que o Pai Natal entrasse com comodidade e colocasse as prendas onde devido.
Por isso, na noite de 24, antes de me ir deitar, eu verificava se o sapato estava em posição e se a porta das traseiras estava no trinco, se a campainha funcionava, se, se se...

Na verdade, nunca acreditei que aquele frigorífico me viesse parar às mãos. Mas desejá-lo já era maravilhoso.
Nesse Natal em que o meu pai estava longe, na América, eu fiquei sozinha com a minha mãe. Nessa altura, eu ainda acreditava em deus, e todos os dias ao entrar em casa eu ia direita ao pinheiro, ajoelhava-me em frente ao presépio e pensava no meu pai lá longe e se o Pai Natal se iria lembrar de mim.

Na manhã do dia 25, quando cheguei à cozinha, havia presentes em redor do fogão. Um deles tinha um tamanho que lhe tinha permitido, com toda a clareza, passar pelo buraco da chaminé. Fiquei muito excitada. Abri-o com enorme expectativa e lá dentro estava o meu maravilhoso frigorífico.
Pequenino e perfeito, com as suas prateleiras móveis, o congelador com porta de abrir, uma luzinha que acendia quando se abria a porta, os pequenos pacotes (de manteiga e não só), a garrafinha de leite e a cestinha com 3 ovos. Tudo se podia mexer, nada era cenário, apenas a escala, deliciosa, à altura da minha boneca preferida: a Patch.
As dúvidas que eu já começava a ter quanto à existência do Pai Natal, sobretudo pelas observações de colegas que já estavam mais informadas, eclipsaram-se com a adequação total: da concretização do sonho (era impossível o meu pai tê-lo comprado porque estava a milhares de quilómetros de distância; e como a minha mãe chegava do trabalho já depois de a loja ter fechado era também impossível que ela tivesse tratado disso; logo, só podia mesmo ter sido o Pai Natal) à evidência da possibilidade física da passagem do embrulho pela abertura da chaminé.

Ainda tenho esse frigorífico. Está impecável, apesar de terem passado entretanto exactamente 40 anos.
Eu tinha sete, a caminho dos oito. A caminho dos oito o meu pai voltou da América, com as novidades dos meses lá passados no inverno frio de Great Lakes, e que incluíam não apenas as recordações dos colegas do curso que lá fez, como os novos hábitos: flocos de milho ao pequeno-almoço (que eu odiava, porque sempre detestei papas e não suportava os flocos com leite todos moles e excessivamente doces) e as chiclets de caixa amarela, um sabor verdadeiramente novo para quem, como eu, só conhecia as pastilhas pirata e esse sim muito interessante.
Mas isso foi depois. Desse Natal, provavelmente o último em que eu acreditei no Pai Natal, um bocadinho antes de eu crescer, e dois anos antes de ter perdido deus para sempre, eu senti sobretudo a falta dos meus afectos. O meu pai, tão longe.

Apesar da minha descrença, o Pai Natal, no entanto, tem sido generoso comigo. Ao longo dos anos, tenho mantido a família por perto. Uma família que tem aumentado, embora também já tenha algumas perdas.
Tenho os meus pais, a minha irmã (que veio depois desse natal de há 40 anos), a família dela, a minha também. A nossa família tornou-se maior. E, com o tempo, as cartas ao Pai Natal foram mudando.
Não se iludem: não deixei de as escrever. Mas agora entrego-as directamente aos dois responsáveis: o meu pai e a minha mãe. As cartas levam sugestões. É uma boa maneira de evitar repetição de livros ou filmes, por exemplo.

Diria, também, que o Pai Natal tem sido obstinado. Não tem deixado que nos esqueçamos dele. É certo que a presença de crianças na família tem feito honra à sua continuação. Um pouco mais cedo do que eu, o meu filho usou da lógica e percebeu que tínhamos de ser nós a oferecer as prendas. Achou que a ideia do velhote e das cartas e das viagens relâmpago era boa, mas pouco razoável. E até pouco justa. E topou a cena toda. Tinha seis anos. Mas este ano, e enquanto a minha sobrinha acreditar, nós vamos reencenar o mistério. 

No meio da confusão destes dias, ainda me faltam algumas prendas e não tenho, desta vez, a mais pequena ideia do que podia escrever na minha própria carta. Coisas consumíveis, sem dúvida: um ou outro livro, chá, azeite, compotas, café, talvez um queijo ou um vinho alentejano. Mas sobretudo a esplendorosa galhofa que estala sempre que nos reunimos. 
Essa não é preciso embrulhar. Nem carece de espaços especiais para passar. Circula livremente. O Natal é mesmo uma festa. Mesmo que, no nosso caso, o presépio seja uma encenação, a árvore seja o mais importante mesmo que seja de plástico, e deus esteja ausente para a maior parte dos membros da família. 
Entre a tradição e o presente, nós mantivemos o eixo do simbólico e, entre ateus e agnósticos, com franca minoria de católicos e mais nenhumas confissões, um espírito sinceramente re-ligioso. Porque o que fazemos no Natal é um acto de re-ligar. Entre nós, entre todos. Pelo puro prazer de estarmos juntos. 

Vou reformular o início. Eu acredito no Pai Natal. É esta magia algo idiota de gostar de ver filmes com neve e pinheiros e embrulhos e estórias de amor. Coisas pirosas e christmas carols. É o desejo de bacalhau e bolo-rei e a fobia dos centros comerciais de que fujo o mais que posso. E a antecipação do almoço do dia 25, em que nos reunimos todos.

Penso que o Pai Natal ficaria contente.
Um Natal quentinho para todos!




quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Carta 17: Livros assim como caixas

Tive muitas vezes a sensação de que os livros são como caixas. Não só caixas de tesouros ou de inquietações, mas muitas vezes também caixas de música.
Isso deve ter a ver com uma memória de infância. A minha mãe tem, desde há muitos anos, uma caixa de jóias que tem também um mecanismo musical. Se se der corda, ao levantar a tampa começa-se a ouvir umas notas encantatórias que acompanham o tempo de escolher os brincos, um anel, um pregador. A caixa é preta e tem incrustações em madre-pérola. Uma prenda de alguém que esteve na China. Há muitos anos. Acho que antes de eu nascer.
Dentro da caixa há compartimentos. Como capítulos. Portas para outras estórias. Manias minhas. Isto de achar que as estórias são como acontecimentos que se encaixam uns nos outros e que se continuam ou mudam de rumo. Como as pessoas. Como os livros.
À conta da música desta caixa, também para mim, por associação, os livros acabaram por funcionar como caixas de voz. Como caixas de música. "As velas ardem até ao fim" do Sandor Marai, por exemplo. Abro-o de repente. E de lá se ergue uma voz que conta. Como uma melodia. "O memorial do convento", do Saramago, por exemplo. Porque de lá se ergue a voz do autor. Rumorosa e irónica. E generosa.
Às vezes, os livros também funcionam para mim como máquinas do tempo. Especialmente quando são biografias. Quando há vários anos li "L'École de Barbizon et le paysage français au XIXe siècle" do escritor e crítico Jean Bouret, a empatia que ele nos consegue criar com aqueles pintores é tão grande que não pude deixar de sentir uma enorme tristeza com a aproximação das últimas páginas. A pouco e pouco, essas páginas avançavam para o fim das suas vidas e a cada uma que voltava era como afastar-me um pouco mais daqueles pintores. Até que o livro terminou. Tal como as suas vidas. Mas, exactamente como uma caixa mágica que nos permitisse viajar no tempo, ao voltar a abrir o livro nas primeiras páginas, lá os voltava a encontrar, jovens e cheios de energia para resistir, cheios de vontade e de cumplicidade, de olhos cheios de luz a caminho da floresta de Fontainebleau.
Talvez também me tenha apaixonado por esses pintores porque eles se apaixonaram pelos seus sonhos e não os deixaram perdidos. Ou talvez também me tivesse apaixonado por esses pintores porque eles passaram a vida entre as árvores e as árvores cantam aos meus ouvidos desde que ouvi ler "A floresta", da Sophia de Mello Breyner quando eu tinha 5 anos.
Enfim, livros para falar de outros livros.



Resolvi hoje escrever sobre estas coisas, não só porque as árvores estão douradas e ruivas e à beira de ficarem quedas e mudas, dormindo sob a chuva. (Tenho sempre a sensação de que as árvores no Inverno — quando a sua anatomia é mais aparente, como dizia o Henry Moore — dormem; e que se aconchegam na terra, como nós fazemos na cama, quando a chuva cai.) Foi também porque estou a ler um livro do Fernando Savater "A arte do ensaio: ensaios sobre a cultura universal" que é exactamente como uma caixa cheias de caixas lá dentro. Algumas das caixas que ele abre eu já abri também há anos. Outras, nunca abri. Mas fico com vontade de as abrir todas. De novo ou pela primeira vez.
Há uma outra caixa que eu abro também com alguma frequência: o Roland Barthes, especialmente a caixa dos "Fragmentos de um discurso amoroso". De cada vez que a abro, não posso deixar de sentir que é uma caixa nova. Que guarda e revela coisas que não vi da última vez; que ainda não estou a ver.
Nunca sentiram que há coisas que, para serem vistas, precisam de esperar por outras visões?
É isso que sinto, muitas vezes. Não só que os livros nos escolhem, porque só eles sabem quando estamos prontos para nos abrirmos a eles. Mas também que há livros de uma paciência infinita. Que nos vão contando, cantando, encantando, baralhando... enquanto nós somos demasiado novos, demasiado incultos ou demasiado apressados para os acolhermos com precisão.
Os livros até sabem aquilo que os seus autores desconhecem. Ou que os seus leitores ignoram. Por exemplo: que a precisão é sempre outra coisa a cada instante que passa. Que a precisão pode até ter outro sentido: o da necessidade. Que as necessidades são sempre diferentes. Por isso eles se nos revelam aos poucos, de cada vez.
Os livros são mesmo objectos absolutamente mágicos. Olho para eles e sinto-me orgulhosa de os ter por perto. Sinto-me feliz por eles se manterem aqui. Não consigo desfazer-me dos meus livros. Mesmo que eles não sejam meus mas eu deles. Um dia, ainda escreverei sobre aqueles que emprestei e nunca mais vi. Ficaram a pairar em ausência cá em casa. Como portas fantasmas cujo lugar e convite distante eu ouço ao longe ao passar pelas estantes.

sábado, 6 de novembro de 2010

Carta 16: Novembro, mês de afectos

Novembro é um mês de afectos. Quando era pequena não tinha amigos que fizessem anos em Novembro. Mas tinha aulas e coisas para fazer com os amigos e a escola. Nos primeiros dias, como agora, ainda havia calor. Parecia sempre uma espécie de permissão para não vestir ainda os casacos. Mas já havia castanhas no mercado, castanhas assadas em casa ou na rua, folhas secas pelo chão e uma luz doirada que indiciava outros dias. Uns dias depois do S. Martinho, a temperatura caía a pique (uns 10 graus, às vezes mais...) e toda a gente se queixava do frio súbito, como se fosse uma grande surpresa. A luz, contudo, continuava doirada e magnífica.

Quando fui para a faculdade, Novembro era o mês em que arrancavam de facto as aulas. Era quando começávamos a trabalhar, mais a sério. Mas era também o mês em que púnhamos a conversa em dia, em que falávamos dos livros que nos encantavam e em que íamos ao cinema. De novo. Com os amigos, depois das férias.
Entretanto, comecei a ter amigos que faziam anos em Novembro. O Zé Ricardo, por exemplo.

Uns anos mais tarde, já a faculdade tinha ficado para trás, conheci o meu marido. Que também faz anos em Novembro. Passámos a fazer, com alguma frequência, umas viagens outonais, para celebrar o aniversário e para experimentar o começo do frio, que tanto nos agrada. Uns anos depois, nasceu a minha sobrinha: também em Novembro. Alguns anos mais tarde, ganhei uma nova cunhada: que também faz anos em Novembro.



Novembro é, por isso, para mim, um mês de afectos e sensações calorosas. Mantendo ou não os magustos — e hoje faltei a um, porque o email, estupidamente, mandou o convite para o junk mail... e só o encontrei à noite por acaso... —, Novembro é um mês que associo aos encontros, aos jantares com os amigos e a família, às mensagens ou aos telefonemas para dar os parabéns aos amigos que estão longe. Apetece andar de bicicleta, passear na praia, andar na cidade. Apanhar chuva e sentir o primeiro frio. Ou aproveitar estes raios de sol acolhedores.
Novembro é um mês para celebrar os prazeres da vida. Tenho pena de que não haja mais árvores com folhas ruivas, e que as pessoas não deixem à noite as janelas sem cortinas, como na Europa Central, para olharmos lá para dentro e ver a luz e as cores, e os seus habitantes passando como num filme, ou sentados nas salas a conversar ou a ler. Como num quadro flamengo do século XVII.
Lá terei de ir à estante, à procura de qualquer coisa. Talvez uma revisitação. A Túlipa Negra, do Alexandre Dumas, por exemplo. Em Novembro também apetece voltar a olhar para dentro. Que é o que se faz quando se reencontra um velho amigo. Como um livro lido há mais de trinta anos.
Daqui a dias, depois do S. Martinho, a temperatura irá descer bruscamente. Uns 10 graus ou mais. E as pessoas queixar-se-ão, com ar chocado, da mudança brusca do tempo, do inesperado dessa mudança. Eu irei comprar mais castanhas e irei comê-las devagar, à beira de um livro e de outros aconchegos.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Uma descoberta para partilhar

Uma nota de uma descoberta acidental e feliz.
Um escritor chileno enviou-me uma mensagem simpática no Facebook. Convidava-me a entrar no seu mundo, através do blog onde escreve textos que interpretam e renovam a sua herança ancestral. É uma partilha rara e luminosa e não posso deixar de a passar também. Uma pequena mas valiosa prenda.
Obrigada, Héctor. E espero que vocês gostem.

http://www.hectorvelizpm.blogspot.com/

domingo, 3 de outubro de 2010

Carta 15: Outubro, mês sempre novo

Quando eu era pequena, as férias de Verão cobriam também o mês de Setembro. Como nessa altura os meus pais já tinham voltado ao trabalho e as férias na praia já tinham ficado para trás, Setembro era sempre uma espécie de tempo de espera. É claro que havia os amigos para brincar na rua, mas de algum modo os dias menos claros do fim do Verão já traziam um melancolia que tornava mais notória a impaciência. Era bom brincar, mas já cansava, tanto tempo sem ver a escola, tanto tempo sem o que fazer...
Quando Outubro chegava parecia que trazia uma frescura que era mais do que os dias a ficarem mais outonais. Digamos assim: em termos cromáticos, Setembro é um mês vagamente pálido, uma espécie de amarelo gasto, queimado do sol do Verão. Em Outubro, as cores tornavam-se mais vivas: azuis fortes, brancos e cinzas marcados, preto. De onde me vêm estas cores? Dos cadernos da escola, claro está.
Outubro era tempo de comprar cadernos novos, de ver novos livros, de afiar os lápis Viarco e observar as borrachas imaculadas, com todos os cantos bicudos. Era tempo de forrar os livros, de arrumar a pasta, de rondar as batas brancas e ver o que tinha crescido para baixar as baínhas.
As canetas de tinta permanente eram revistas, para verificar se os apáros continuavam operacionais, as esferográficas vinham novas, normalmente Bic laranja ("escrita fina") ou Bic cristal ("escrita normal")... como cantava o anúncio da Bic, na televisão.
A tinta das canetas de tinta permanente era azul, de um azul forte que brilhava sobre o branco do papel, sobre a novidade dos cadernos limpíssimos.
Por isso é que Outubro mantém intactas estas cores, para mim, até hoje. E porque a escola, apesar da doida da Rita, a minha professora torcionária, era uma festa, Outubro oferece-me sempre uma sensação energizante de renovação. Em Outubro, sinto que tudo recomeça (enquanto em Setembro sinto que tudo apenas se esfuma ou, na melhor das hipóteses, amadurece com vagares inquietantes...) e que o mundo se abre à minha frente com infinitas possibilidades.
O dia mágico de Outubro era, nesses anos, o dia 7. Era sempre no dia 7 de Outubro que as aulas recomeçavam. Era, por isso, uma data mágica. Dia de acordar com um objectivo, uma responsabilidade. Voltar à escola era reafirmar a minha participação no mundo, o exercer dos meus deveres de cidadã enquanto criança, ou seja, como estudante. Assim me explicaram os meus pais. A eles cabia trabalhar. A mim, cabia estudar. Era o meu trabalho e por isso eu não devia esperar prendas pelas boas notas, nem castigos pelas más: receber uma má nota ou chumbar, se isso acontecesse, já seria castigo suficiente. Esperava-se de mim que eu desse o meu melhor; como se esperava dos meus pais, nos seus trabalhos.
Por isso, apesar de nunca ter sido uma excelente estudante enquanto fui miúda, fui sempre boa aluna: tinha boas notas, dava o meu melhor. Pelo menos, dentro da sala de aula. Estava com atenção e concentrava-me o que podia. Por isso, estudei sempre, fora da sala, o menos que pude. Até chegar ao Mestrado, diga-se de passagem. Aí, como já era crescida, a coisa mudou, finalmente.
Mas em Outubro eu volto sempre a ter menos de 10 anos. Em Outubro, vêm-me à memória as batas, a mala de pele castanha que eu levei para a escola ao longo de toda a primária e do ciclo preparatório, as canetas e o azul intenso da tinta, os lápis, os afias, as borrachas, e o papel de livros e, sobretudo, dos cadernos.
É também o regresso à escola, fisicamente: subir as escadas, o cheiro da terra do recreio, o cheiro da sala com as mesas e cadeiras de madeira escura, com o quadro de ardósia, com as janelas grandes por onde entrava a luz. O barulho das cadeiras a arrastar no chão, o som dos murmúrios e das perguntas clandestinas, o estalar dos sons no intervalo... e depois o regresso a casa, em grupos de miúdas, conversando pela rua até casa.
Se eu fechar os olhos, ainda sinto o cheiro do papel e da tinta, ainda vejo o brilho da tinta sulcando a folha, ainda sinto a tensão de ter de desfiar uma caligrafia moderada, legível, irrepreensível (nunca a tive, mas tive de a perseguir durante anos...).
Ofereci essa memória a Helena, no início da Cartografia Íntima, quando ela, no hospital, repensa a sua vida, logo no início do livro.
As memórias dos escritores podem não ter nada a ver com a das suas personagens, mas também podem ter. De qualquer modo, a memória é sempre uma ficção.
Um dia destes, voltarei a escrever sobre essa forma de tecer. Até lá, que Outubro vos ilumine os dias!

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Carta 14: A propósito de outras imagens e de outras peles — Sobre o livro de Vera Castro

Já aqui contei, há uns meses [http://cartografiaintima.blogspot.com/2010/05/carta-1-ao-fim-de-muito-tempo.html] como começou a gizar-se o projecto de Os Cinco Sentidos, tudo tendo partido de um conjunto de pinturas de Vera Castro. Por isso mesmo, e porque a Vera nos deixou há alguns meses, não queria deixar de escrever umas breves linhas sobre o seu livro. Que saiu ontem, mesmo à beirinha do fim do Verão.



"O Papel da Segunda Pele" é uma edição póstuma de um trabalho que a autora não conseguiu concluir, tendo sido para isso indispensável o papel de alguns amigos. Mas, no muito que deixou feito para este volume sobre o mundo do figurinismo em Portugal, de que ela foi também um dos mais destacados nomes, mostrou realmente o quanto ela sabia ser generosa. Apagando-se, dando voz aos outros e às suas criações, o que nos deixou em legado é muito bom. Fica apenas alguma pena de ela não ter deixado também os seus próprios trabalhos...

É difícil não lembrar a Vera, com a sua voz suave e o seu ar de rapariguinha, mesmo já com 60 anos, leve e luminosa, boa ouvinte e com um toque de timidez. Sempre vestida de um modo que me fazia lembrar a frase de Blaise Cendrars a propósito da Sonia Delaunay: Sur la robe elle a un corps. Vera, toda elegante, fazia brilhar a roupa e a roupa devolvia-lhe a sua pele com toda a serenidade dos gestos.
Gostei muito do título do livro, por isso mesmo. Porque me parece muito evidente mas muito acertado.
Gostei muito também que os amigos tivessem sabido manter este projecto até à sua concretização.

Também gosto muito do resultado final e acho que a Athena/Babel fez um bom trabalho.

Falta-me só uma coisa.

Tenho saudades da Vera.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Carta 13: A propósito das imagens

Todos conhecemos a máxima "uma imagem vale por mil palavras". Tendencialmente estou de acordo, mas devo ressalvar que depende, obviamente, da imagem. De qualquer modo, é de algumas delas — das que valem até mais do que mil — que quero falar.

Há vários anos escrevi um livro de contos com o singelo título de "Contos do Princípio". Andava muito em torno de questões simbólicas, e diverti-me muito a escrevê-lo. Um dos contos desse livrinho, o primeiro de todos a ser escrito, intitulado "Os Barqueiros do Rio Cheio", foi escrito um pouco de jacto, tinha eu 21 anos e acabava de chegar da Alemanha, onde tinha comprado um sem número de cadernos chineses forrados a seda e cheios de bonecos cuja tonalidade (e, diria, movimento) mudava de acordo com a exposição à luz. Foi inspirado na capa de um desses cadernos que o conto saiu assim de jacto.
Quanto ao mais, o livro demorou imenso tempo a ficar completo, apesar de apenas incluir cinco narrativas (mais 4 para além dessa) e de serem todas bastante simples. Terminei-o em 1994, dez anos depois de o ter iniciado. Algum tempo passado, vi numa galeria já extinta de Lisboa, uma exposição do Manuel João Vieira (para os mais distraídos, actual candidato à presidência da República, um rapaz da minha idade, e que tem o meu apoio, claro está!). Para minha grande surpresa, no meio do caos da exposição (as telas estavam encostadas às paredes e acumulavam-se junto ao chão, discutindo o espaço com os visitantes na inauguração e ao longo de todo o período expositivo), havia um quadro que contava a história toda desse livro, com a maior das naturalidades. Sempre pensei que se algum dia o livro fosse publicado, me encheria de coragem e iria pedir ao Manuel João para me deixar usar o quadro como capa. Infelizmente, não sei o título do quadro e duvido que o Manuel João, com as actuais preocupações político-artísticas, me contemplasse com a sua aceitação.
Anyway...

Quando comecei a escrever a Cartografia, como já aqui contei, tinha na mente algumas imagens da Vera Castro. Porém, com o desenvolvimento da estória, o quadro que a protagonista e o tio vêem em Londres, na National Gallery, é um retrato que, actualmente, se encontra na Gulbenkian (enfim, actualmente, está em Madrid, numa exposição temporária sobre a obra do Ghirlandaio, seu autor).
Como é um quadro que ocupa parte importante das reflexões da personagem, pensei sugeri-lo como capa para o romance. Mas, tive receio de duas coisas:
1. que fosse tomado como presunçoso;
2. que, sendo inicialmente aceite a ideia, fosse por fim recusada por serem altos os direitos a pagar.



É este o quadro. Chama-se "Retrato de uma jovem" e é da autoria de um pintor italiano do século XV, chamado Domenico Ghirlandaio.

Quando o meu editor me pediu para ir pensando em capas para o livro, mais concretamente em ideias para imagens, eu bloqueei. Que imagens? Quando ele, por fim, mencionou que podia, por exemplo, ser um vestido, houve, de imediato, outra imagem que me veio à cabeça e que, de certo modo (ou, melhor dizendo, do modo certo), apontava na direcção da minha estória. É ela a pintura de Paula Rego, "A Prova".
Escusado será dizer que bloqueei pelas mesmas razões que me haviam levado ao silêncio no caso do italiano.




Enfim... agora, quase dois anos depois, tenho mesmo pena de não ter tentado.

Mas, enfim, aqui ficam partilhadas mais essas coisas íntimas que ficam fora da estória publicada.
É verdade que há imagens que valem mil palavras (até um milhão ou mais) mas também há outras que não valem sequer que digamos nada sobre elas. Ou que, pura e simplesmente, nos deixam na boca um sabor a pouco. A demasiado pouco.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Carta 12: A escolha dos livros

Acho que foi em 1984, ou perto disso. Li numa revista uma recensão sobre um livro que se chamava "O Amante". Era de um escritora francesa, que tinha crescido na Indochina. Chamava-se, já toda a gente percebeu, Marguerite Duras.
Lembro-me da surpresa dessa escrita. Frases fragmentadas, cheias de luz e humidade, com vagos verdes flutuantes e sussurros. Nunca tinha lido nada assim. Foi um choque e uma sedução que ficou. Depois desse, li inúmeros livros dela. E escrevi também sobre ela. Quando comecei a escrever recensões sobre literatura, no extinto "O Jornal", em 1989, já tinha lido quase 20 livros dela. Na redacção, só havia uma pessoa que tinha lido mais livros dela do que eu (não que isso fosse uma coisa de medir, mas porque foi a descoberta de um fascínio partilhado): a Dóris Graça Dias. Mesmo não a conhecendo, gostei dela só porque ela gostava da Duras. E de livros. O que era muito claro.
A Duras tem-me acompanhado, embora nos últimos anos a tenha visitado menos. Mas continua a ser um dos meus mais queridos prazeres. Há muitos anos, quando eu ainda me desgraçava na Feira do Livro, antes de haver fnacs e amazons da nossa perdição, já tinha decidido que não ia gastar nem mais um tostão quando vi, em livro do dia, uma provocação irrecusável: um livro da Duras e logo com o desavergonhado título de "Emily L."! Sinceramente! Um livro dela com o meu nome! Tive de o comprar. Claro está.
Como esse, li apetecidamente tudo (ou quase tudo) o que dela me veio parar às mãos. Acho que nenhum outro autor fala da água como ela. Mas há outras coisas. Lembro-me, por exemplo, de ter lido "Dez horas e meia numa noite de Verão". Um livro quase sem água. Um livro que me pareceu azul escuro. Escuríssimo. Mas não negro. Apenas azul profundo. Algures no meio da narrativa, surgia a palavra trigo. Lembro-me perfeitamente de onde estava: no momento em que lia esse livro, no momento exacto em que surgiu a palavra trigo, eu estava sentada no eléctrico 28. Ia a passar na Afonso III. Ao fundo, o Tejo. Era o fim da tarde. Eu levantei os olhos do livro porque ela conseguiu que, no meio de todo aquele azul escuro, a palavra trigo brilhasse de um oiro intenso. Fiquei toda a tremer! Alguns mais cínicos poderão dizer que isso me foi infundido pela capa do Matisse, mas e se foi? A adequação era total e a escrita não perde nada de cromático nem de lumínico por isso!
Bem, já se percebeu que a escritora me toca. No entanto, houve um livro ao qual eu resisti durante anos. Chama-se "Moderato Cantabile". Já contei esta estória, mas vou contá-la de novo: tentei ler esse livro umas seis ou sete vezes. De todas as vezes o abandonei. Havia duas personagens que se encontravam numa tasca. Conversavam. E bebiam copos de vinho tinto. Durante anos, eu não consegui suportar o cheiro do vinho tinto. Por isso, era-me também impossível bebê-lo. Por isso me era impossível ler aquele livro, cujas palavras derramavam vinho de cada vez que lhes tocava.
Passaram mais anos. Um dia, já eu tinha há muito passado dos trinta, aproximei-me da estante. Quase posso garantir que o livro me disse: "é hoje". Peguei nele e li-o, apaixonadamente, de fio a pavio. Nem queria acreditar que nunca o tivesse conseguido ler antes. O odor a uvas maduras encheu-me a boca. As conversas fluíam e o tinto corria sobre a mesa, num livro todo ele da cor do mar de Homero. Uma coisa incrível. O livro chegou ao fim. E, a partir desse dia, eu passei a gostar de vinho tinto.
Não há vez nenhuma que, ao saborear um tinto, eu não faça mentalmente um brinde à Duras.
Acho que um bom livro é também isso.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Carta 11: O tempo (breve nota)


Em 1988, para o catálogo da Exposição Antológica de Paula Rego na Fundação Calouste Gulbenkian, John McEwen, no final da entrevista, colocou à pintora algumas perguntas sobre o tempo. Porque as respostas me tocaram especialmente, aqui fica a transcrição dessas linhas.

“— Há trinta anos que vem pintando — a idade e a experiência acha que são coisas que ajudam?
“— Ajuda, sim, ajuda. Já mais capacidade de concentração, tem-se uma ideia muito mais nítida do que se pretende fazer. […]
“— Quer dizer, a idade é outra libertação.
“— Para os homens não sei — nas mulheres acho que liberta imenso.” 

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Carta 10: Alguns lugares da memória


I

Desde pequena que gosto de casas. É uma verdade simples. Ligo as casas aos cheiros, às presenças, às sombras. Mas também às possibilidades. Como se as casas tivessem uma vida própria. Que se revela nos móveis, em quem os move, os usa, os limpa e enche de objectos. E que se revela em quem a habita, também. Mas também — e se calhar sobretudo — que se revela nas paredes, nos tectos.
Sempre gostei de pensar as minhas casas. Ao longo da minha vida, já fiz e refiz várias casas na cabeça, arrumando nelas as coisas do quotidiano e ornando-as das coisas raras que se colhem nas múltiplas viagens. Sobretudo das que nunca fiz. Por isso, de todas as coisas que já pensei para as minhas casas, com as minhas casas, uma coisa continua a atrair-me enormemente: o tecto branco, como uma folha lisa, para o qual olho quando me deito a sonhar e no qual sonho mover-me.
Esse é um exercício que continuamente faço, um gosto que nunca perdi. Já perdi outros. Por exemplo: caminhar no outro lado do espelho, costume que levei a cabo com alguma insistência, durante algum tempo da infância, quando me observava a adentrar-me no espaço simétrico ao real, habitando o reflexo com a consciência de o estar a fazer. A magia do desconhecido não era estragada pela impossibilidade de percorrer, visualmente, as divisões que saíam do ângulo de visão do espelho. Antes, era continuada. Mas enfim esse hábito perdeu-se no tempo. Passei a cultivar, outrossim, as viagens interiores — sem necessidade do espelho. Para isso, os tectos em branco servem-me na perfeição. Navego sobre eles com  o cuidado de jamais macular a alvura que os torna apetecíveis, espaços que potenciam a minha imaginação. Elevo os pés para ultrapassar a barreira das ombreiras. E deslumbro-me com a possibilidade de encher esses lugares de coisas. De os encher sem jamais os tocar, sem jamais tocar os objectos com que proponho torná-los habitados, enquanto, lá em baixo, no chão, no território da plausabilidade e da acumulação histórica, se amontoam objectos e obrigações.
Por exemplo: cá em cima eu não cozinho, não lavo loiça, não limpo o pó, não faço compras. Cá em cima o espaço do abismo apenas existe na exacta medida da viagem para a qual não é necessária bagagem outra que a da alma. 
Por todas estas coisas, o espaço do tecto é um lugar onde o desenho impera. Tudo nele é possível. Todas as coordenadas, todas as linhas, todas as cores. Sei isso porque o branco permite que nele tudo se inscreva. Até a noite. (Imagino sobre ele o céu que varia de cor de acordo com a hora do dia). Mas sobretudo o silêncio.
Também não sei porquê, mas no tecto não careço de palavras. É um espaço de libertação.

II

Avancei pela casa ressoando os passos no passadiço. Em qualquer outra paisagem, este passadiço levaria provavelmente a um lago. Junto a ele haveria um barco, ou então, da sua beira, eu poderia saltar para dentro de água, como acontece tantas vezes no cinema. Mas aqui o passadiço apenas leva ao interior da casa. Por isso posso com certeza dizer que no interior da casa, no meio, como num coração, num eixo (se fosse uma árvore, esse eixo seria, simbolicamente, o caminho para o céu; como não acredito na transcendência, seria o caminho do azul; apenas uma cor ou uma distância), começa a viagem. Dentro da casa começa a viagem.
O espaço em redor é branco. Branco do tecto, das paredes, do chão. Branco como quem tem pela frente o mundo no início. A casa como possibilidade.
Páro na beira do passadiço e olho para dentro da minha vontade da casa. Aqui tudo é possível. Em redor, como a voz que de mim poderia vir, sons misturam-se. Tornam-se brancos. Silenciam-se por vezes. Como se respirassem. Tomassem fôlego.
Mergulho, não mergulho? Não posso mergulhar. Não faço parte integrante, como elemento físico, deste amplíssimo leque de possibilidades. Fecho, portanto, os olhos e viajo por dentro, tomando a casa como parte de mim, não o inverso.
Reabro os olhos para não cair. Faço com cuidado o trajecto em sentido inverso. Cá fora, no pátio, os espelhos que reflectem os meus passos, o meu corpo, casa das minhas vontades, dos meus abismos, das minhas possibilidades e impossibilidades, dão-me mais próximo o céu.

As flores de laranjeira estão em pleno processo de sedução. As laranjeiras do pátio encontram-se por isso continuamente rodeadas de abelhas. Movo-me em torno a elas, com o prazer e o respeito devido a quem permite o perfume mas também potencia a dor. Não quero acordar esta última hipótese.

III

Num canto do jardim chegou a notícia. Não foram estas as palavras mas o seu sentido indiciou a quebra de um elo com a casa. Com a morte da minha tia, o último fio que me ligava às memórias das férias em Lagos, ficou lenta e inexoravelmente perdido num ponto inalcançável. Nunca mais eu poderei exibir, descendo a rua e acenando-lhe enquanto ela fica à porta, a relação íntima com a cidade. Passarei a ser, como qualquer outro visitante, alguém que a cidade recebe por cortesia, não por familiaridade. Não por laços de sangue. Dói-me essa perda de sentido que se amplia no vazio das paredes, dos sons que não voltarão a soar, as vozes, o relógio de parede na sala que foi dos meus avós, o zumbido das abelhas do verão torneando o perfume e o vermelho das rosas. Por trás delas e em redor havia o muro caiado do jardim. E aí eu tinha os medos, os sustos, os encantos dos gatos jovens que costumavam aparecer e fugir rente à cal, sem temer os espinhos que me impediam de os seguir.
Perder o direito à casa é perder o lugar na cidade. E assim se vai, sem que eu possa deitar-lhe a mão, a minha identidade enquanto ser do lugar.

Porém, esta que agora perco não era já casa da minha infância. Esta não tem jardim. Apenas um saguão no primeiro andar, e um generoso terraço no segundo piso, com uma vista sobranceira para algumas ruas vizinhas. A outra casa desapareceu há muito. O sítio permanece, é claro, mas a arquitectura mudou. Por fora, pelo menos; e é aceitável supor que por dentro se alterou mais ainda. Na ânsia de ganhar quartos, não sei se terão abdicado do velho espaço dedicado às rosas. Curiosamente, essa casa eu não perdi. Há muito que me resignei a guardá-la na memória. Para o melhor e para o pior. O mesmo é dizer que há muito a habito quando quero, a visito quando posso ou a isso sou obrigada. Porque há também imposições nas memórias. Não recordamos apenas os dias de sol.
Essa casa, que eu não perdi porque a deixei fisicamente há muitos anos quando muitos membros da família ainda eram vivos, permanecerá sempre a minha casa de férias na origem do meu gosto pelo cheiro da cal.
Aí arquivei outros sons, outras vozes. O mesmo relógio de parede, contudo. Alguns móveis que, comigo, fizeram a passagem para a outra casa. As velhas cadeiras onde os meus avós se sentavam. A que mais cedo perdeu o seu uso, na morte da minha avó de quem herdei o nome e a data de nascimento do meu filho. Sei, por ter ouvido contar, que o meu avô guardou nessa cadeira a dolorida ausência da companheira de quase meio século. Quanto tempo terá levado a que alguém voltasse a sentar-se naquele assento?
Quando também o meu avô abandonou o seu lugar, as cadeiras mudaram de casa. E a sua arrumação no espaço novo deu-lhes um novo papel e quase uma nova vida. As minhas tias sempre temeram os fantasmas e por isso deixaram para trás essas memórias. Contudo, não deixaram nunca de ser assombradas. Não tiveram nunca a coragem de ser assombrosas. E misturaram os móveis velhos com novos, em divisões diferentes, dividindo as lembranças pelo espaço, para as enfraquecer, para reinar.

IV

Por mais que pense, não sei muito bem até hoje quem foi esta mulher que hoje morreu. Sei que, lá em baixo, junto ao mar em que ela nunca mergulhou em adulta por pudor e frio, e que há anos não olhava de frente, ela fechou hoje os olhos pela última vez e adormeceu. Não voltou a acordar e assim nos disseram que morreu. Sozinha, entre quatro paredes, sentada num sofá no qual se sentava para ver televisão. Sozinha, depois de ter reduzido a sua vida a tratar de todos os mais velhos da família e a vê-los morrer, um a um, como as contas de um rosário.

V

No fim do passadiço olho o branco em frente, iluminado a amarelo, como um sol interno que nasce no interior da casa. Olho-o e ouço os rumores. Água. E na beira do passadiço não posso deixar de pensar que ela morreu e que eu nunca mais poderei voltar à casa onde ainda permanecem as memórias dos verões da minha infância.

VI

Eis de novo a casa onde ela adormeceu, fechou os olhos pela última vez. Uma casa caiada, paralelepípedo integrado na malha da cidade. Com terraço sobre as ruas para melhor ver o seu pulsar. Essa foi uma das razões pelas quais elas escolheram esta casa, há exactamente trinta anos, depois da morte do meu avô. Depois de também ele ter deixado vazio o seu lugar. Porque aqui estavam no centro da cidade, na rua do cinema, numa casa com janelas de onde podiam ver passar os amantes da sétima arte, no fim das fitas. Elas ficavam à janela, viam-nos passar e sonhavam com essas vidas que deviam ser quase tão monótonas como as suas. Vista de fora uma casa são apenas traços e gestos destinados a erigir um lugar, não é? Que imaginariam elas vendo o mundo do parapeito? Não posso deixar de pensar que a palavra que apára o peito, que lhe dá descanso, as amparou na queda de todos os sonhos, como também lhes impediu a respiração dos desejos, o culminar das vontades, a por vezes poderosa alegria da queda.
A casa prendeu-as. Como posso ser nostálgica em relação a um espaço assim?
Um dia uma delas disse-me: estou a aprender francês. Mostrou-me um caderno com frases alinhadas, verbos conjugados, notas para uma viagem que ficaria sempre por fazer. Gostava de ir para França, pintar porcelanas em Sèvres. Sorrimos. Foi uma das raras vezes em que a vi com a bonomia da cumplicidade. Lembro-me perfeitamente do sítio em que nos encontrávamos. Um quarto estreito, no último andar, ao lado do terraço. Não tinha janelas, apenas uma fresta, lá no alto. Como se fosse um indício. Depois da sua morte, a irmã invadiu essa divisão com o lixo dos dias que passavam. Que terá feito ao caderno? Um dia, falei-lhe nisso. É mentira, respondeu-me sem qualquer pudor. Ela nunca quis sair daqui. Claro que quis. Até aprendeu francês. Seguia regulamente as aulas na tele-escola. Eu sei. Ela disse-me. Mostrou-me o caderno. É mentira, é mentira, é mentira. Porque haveria ela de querer sair daqui? Que disparate.
Não sei do caderno. E a verdade é que nunca quis que ele aparecesse. Mas devia tê-lo procurado. Só para ter um motivo para voltar a abrir aquele quarto a uma resposta. Agora irá ser esvaziado. É preciso entregar a casa. E já não adianta provar que eu tinha razão.
Como há trinta anos, os meus pais irão esvaziar uma casa. No silêncio dos mortos. Mas nessa altura, havia ainda muita gente da mesma geração. Duas tias, um tio. Muitos amigos na cidade. E esta casa que ainda se encheu. Agora a única casa que resta e com a qual nós vamos passar a ter uma relação é só um paradoiro de férias. Sem habitantes permanentes. Sem quotidiano. Sem promessas nem abismos. Tão estéril quase como um hotel. Como a de qualquer outro ser que por aqui passe e venha a águas.
Deixei de pertencer definitivamente a este lugar.

VII

Não posso deixar de me lembrar de outros episódios, como se a casa se organizasse para me passar as suas memórias. Foi no mesmo quarto, antes ou depois dessa confissão, da partilha do segredo do caderno. Ela tinha uma ideia para um romance. Contou-ma. Era de noite e chovia. Sob uma terrível tempestade vislumbra-se no alto de uma falésia um castelo. À sua porta bate, exausto, um viajante.
Era de dia. Agosto e o céu lá fora era azul e o sol brilhava. Lembro-me de ter de imediato rejeitado tal cenário como literário. A sua era uma estória de amor. Inspirada em muitas, já lidas, já vistas, sem nada de novo nem arrojado com as conchas que ela recolhia na Meia Praia e nas quais pintava paisagens miniatura, que oferecia às amigas, e que deixava espalhadas pela casa, recolhendo o pó. Nunca me agradou o imaginário dela, cansado e poeirento. E no entanto ela pintava os olhos de negro e os lábios de vermelho antes de sair para a rua, punha brincos a condizer com o resto, ajeitava a figura e compunha o andar. Escolhia os óculos de sol. E descia a rua do cinema. Não me lembro de ela alguma vez lá ter ido. Não teria companhia? A quem posso perguntar agora?
A outra ficava em casa, costurando no sofá.
A nenhuma delas um vestido de noiva, um ramo de flores de laranjeira. Nunca suportei o cheiro a pó desta casa. Na mesma sala onde ela fechou ontem os olhos pela última vez, disse-lhe eu há uns anos: estou grávida. Vou ser mãe. Ai que bom filha, cheguei a pensar que era uma maldição nesta família as mulheres ficarem todas por casar. Sim, mas eu não casei, tia. Vou ter um filho. É mais importante, não? A cara dela ficou sem expressão. E depois de um silêncio disse apenas: não vou dizer a ninguém que estás grávida.
Olhei para ela e não levei a mal. Eu estava muito feliz. Não por ter quebrado qualquer maldição, em que jamais acreditei. Mas por ter realizado um sonho. O meu sonho nunca foi um vestido. O delas sim.
Nessa noite abracei-me a um homem. Na nossa casa. No nosso quarto. Na cama que foi dos meus avós paternos. Pensei que, para lá das aparências, o meu avô iria ficar feliz por esse bisneto. A minha avó não sei. Talvez tivesse amargado mais o vazio das filhas. Fiquei feliz quando o meu filho nasceu no mesmo dia em que a minha avó, que me deu o nome, tinha o seu aniversário.
Olho para o tecto. Branco como um sítio por escrever. Sem pegadas, nem rugas, nem quaisquer sinais de passagem. Mas a casa está cá em baixo. O tecto, como um texto, é só um pretexto para eu poder sonhar. Só que esta noite eu tenho medo de dormir.

VIII

O velório vai ser já amanhã. É tudo muito rápido. A polícia ficou tranquila com o depoimento da família. Não foi crime. Apenas uma mulher que se entregou ao fim, no cabo de uma vida, coisa simples. Fechou os olhos. Adormeceu. Não voltou a abri-los. Não é por isso que receio adormecer. É só porque não quero ter ilusões. Sem saber como, expliquei ao meu filho aquilo que nem eu própria percebo com clareza.
Amanhã, no velório, revisitarei o perfume das rosas. Nada de literário, apenas a realidade. O velho quintal da casa dos meus avós faz muro com a casa mortuária. Por isso, para nós, os crescidos, será um pouco como reencontrar os fantasmas do passado. A minha irmã não tem lembranças dessa casa. E não precisará de explicar nada à filha, cujo nascimento dissipou de vez qualquer ideia de maldição quanto à continuidade da família, na cabeça da nossa tia.
Sei que as rosas já lá não estão, como não estão os gatos, como não está o cheiro dos bolos, do leite com chocolate então tão raramente permitido. A cozinha não tinha porta, só uma cortina que dava para um breve corredor de onde se podia sair para o quintal. Um pequeno alpendre, uma torneira, um canteiro a toda a roda. E as flores. E os pequenos bichos. O cheiro da cal, sob o sol, no Verão.

Dobrando a pequena casa mais tarde construída para os banhos, e passando pela outra casa de bonecas onde as costureiras trabalhavam no tempo quente, descia um corredor. Ao fundo, uma porta de madeira poderia abrir directamente para a rua, se velhos trastes não se tivessem amontoado ali por ser saída sem interesse. No termo do passadiço eu fecho os olhos e estou de novo em Lagos, pequena e em pleno Verão. Sinto o cheiro da cal, há ruídos em volta, um rumor de água e lá fora, junto aos espelhos que reflectem o céu, as laranjeiras estão em flor.
Quando somos pequenos o mundo não é só maior. É sobretudo mais novo. Mais liso.




Não consigo deixar de ter um absoluto sentimento de perda em relação ao lugar. A continuidade que eu quis passar ao meu filho não está posta em risco, contudo. Temos outra casa, na mesma cidade. Nessa casa, passamos férias, com menos frequência do que eu gostaria. Mas ele tem já uma série poderosa de memórias associadas ao lugar. Tal como eu, ele lembrar-se-á das manhãs claras de verão, com as rasas ondas como riscos de luz sobre a areia na maré baixa, na Meia Praia. Tal como eu, ele cultiva já a paixão pela cidade. Fingindo que não vemos o monstro que nos devora o coração e que avança, com simulacros de habitação, sobre a paisagem. Apesar de saber que lá estão as sementes do silêncio, temo com frequência que o ruído os abafe um dia e consigo apague todo o fulgor do branco que lhe quis dar de presente.


Abril de 2006 [Na morte da minha tia Luísa].

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Carta 9: Algumas outras inquietações

Não tenho uma memória dourada da minha infância. Não que tenha tido uma infância infeliz. Pelo contrário. Acho mesmo que tive uma infância boa. Entre outras coisas, incluindo as essenciais (saúde, família, casa, comida), tive por perto vários contadores de estórias. Os meus dois avôs, a minha tia Rosa, o meu pai. A minha mãe também, sobretudo a partir de livros. Os outros eram mais dados à tradição oral. E à encenação do contado.
Também conheci alguns mentirosos compulsivos. Que é, como se sabe, uma maneira de contar estórias. Às vezes tinham graça. Outras vezes não tinham graça nenhuma. Mas desses falarei (notem o verbo, tão desadequado ao silêncio apenas cortado pelos meus dedos que teclam...) noutra ocasião. Agora irei contar-vos outras coisas. Outras memórias. De como a minha infância foi também povoada de medo.
Como todas as crianças, penso eu, a minha imaginação era a minha principal inimiga. No corredor da casa dos meus pais, a casa da minha infância, havia muitas portas e pouca luz. Ao fundo, um roupeiro enorme, com três portas que, com o tempo, foram deixando de fechar completamente, anunciava mais perigos. Monstros e afins.
No meu quarto, a primeira porta à esquerda assim que se entrava no corredor, havia outro roupeiro e, naturalmente, o problema repetia-se. Além disso, os cortinados pesados e opacos poderiam sempre esconder presenças mal intencionadas. Como se isso não bastasse, havia o medo do escuro, o dos monstros atrás da porta — o que me levou a desenvolver a célebre técnica dos desenhos animados de abrir a porta com toda a convicção, para esborrachar, sem apelo nem agravo, qualquer monstro parvalhão que se escondesse nesse espaço — e, pior que tudo, crocodilos debaixo da minha cama.
Nunca consegui explicar por que razão haveria eu de ter crocodilos debaixo da cama. Ainda hoje não sei se tal fenómeno se deveria ao meu fascínio por um livro de répteis, ou se por causa do Peter Pan e do crocodilo que tinha tragado, com tanto apetite, a mão do capitão Gancho.
Como se isso não bastasse, também, o prédio em que nós vivíamos ficava mesmo em frente a uma quinta de árvores altas e frondosas. Nas sombras que nela se avolumavam com o cair do dia via eu o território ideal para a proliferação de monstros da pior espécie.
A ajudar à festa, a minha tia Justina gostava de me aterrorizar, confirmando os meus piores receios. Como, nesses anos, eu era uma niquenta de primeira água, ela ameaçava o meu sossego garantindo-me que, à noite, os lobos que viviam na quinta se enfiavam nas escadas do prédio determinados a perseguir e  mesmo a comer os miúdos que não se tinham alimentado em condições.
À noite, depois de deixar os meus pais na sala, eu avançava desesperada a caminho do corredor. Tinha de passar pela porta de entrada e escutava, paralisada, o que me parecia ser o evidente indício da presença dos lobos subindo as escadas ou rondando já a minha porta. Depois, avançava pelo corredor, tentando, a todo o custo, não olhar para as portas do roupeiro do fundo, por entre cujas aberturas temia ver já os olhos vermelhos das bestas, esperando a minha passagem. Transposto este obstáculo, abria a porta do quarto, tacteava a parede para acender a luz e empurrava a porta com toda a alma. Uma rápida olhadela pelo quarto confirmava que estava livre de animais selvagens. Nos dias mais afoitos, chegava a baixar-me para verificar bem por baixo da cama e mesmo atrás dos cortinados. Mas nos dias mais difíceis, deixava, porém, por verificar esses espaços menos visíveis. Despia-me o mais rapidamente possível, enfiava o pijama e saltava do cadeirão para cima da cama como se passasse de uma embarcação para outra, num rio ou num mar pejado de monstros de bocas abertas desejosas de me filarem a dentuça.

Fora de casa, os medos tinham outros contornos e as ameaças outros rostos. Podiam ser os dos miúdos ou miúdas que gostavam de exercer o seu domínio sobre os outros (eu estava incluída entre esses "outros" que, com alguma frequência, levavam umas chapadas sem perceber porquê), podia ser a professora da primária, a tal Rita de que ainda voltarei a ocupar-me, podia ser muita coisa.
Em resumo, as memórias da minha infância só são douradas na luz que certos dias guardavam. Por isso, discordo da minha amiga Ana Barata quando diz que a infância é o melhor tempo da vida. Onde ela vê inocência e liberdade, eu vejo ignorância, medo e dependência. Tal como em relação à adolescência, gostei de ter passado por lá (aliás, que alternativa haveria?) mas estou sobretudo contente de ter(em) ficado para trás. Não sou nostálgica em relação ao passado. Não como um todo.

Estas memórias têm sido ultimamente avivadas pelo facto de andar a ler sobre a Paula Rego e a ver imagens de obras dela. Ainda eu não tinha começado a estudar história da arte e já gostava do trabalho dela. Não porque o achasse "bonito", mas porque o achava inquietante. As primeiras obras que vi dela foram as óperas. Já foi há muito tempo. Mais tarde, conheci a série do Macaco Vermelho. E depois outras obras. A série das miúdas a brincar com os cães. E depois outras. Muitas. Em todas elas eu reconheci partes da minha infância. Das estórias contadas ou dos terrores vividos. A Paula Rego disse-me, com essas obras, que eu não era esquisita por achar que a infância não é uma época dourada. O medo a que ela deu face pintando, como disse Alberto de Lacerda, era também, em muitos aspectos, o meu. Mesmo que eu nunca o tenha pintado.

domingo, 29 de agosto de 2010

Carta 8: A descoberta da inquietação

 [Nestes dias em que as florestas ardem, interminavelmente...]


I
Quando eu era miúda, uma pessoa, de quem recordo apenas o gosto com que abria os livros e nos lia estórias, leu um dia um texto que marcou para sempre o meu imaginário de floresta. Eu não sabia o nome do autor, nem o título da obra, mas nada disso importava. Aquela imagem de uma luz verde perfeita, de um lugar mágico, onde eram possíveis encontros poderosos e verdadeiros, morada de amigos e anões, mundo fabuloso onde as noites eram profundas e perigosas e os dias misteriosos e excitantes nunca mais me abandonou. Até hoje. Mesmo sem saber quem teria escrito aquela estória com a qual eu percebi que a literatura (mesmo que ainda não conhecesse a palavra) era a coisa mais mágica do mundo.

II
No ano lectivo de 1973-74, estava eu no ciclo preparatório e a disciplina de Moral e Religião era ainda obrigatória. Alguns colegas queixavam-se da matéria, triste e aborrecida. Na nossa turma, um professor pouco ortodoxo escolhera, contudo, um método infalível de nos apaixonar e inquietar. Em vez de nos oferecer mandamentos e imperativos, deu-nos a ler um livro pequenino, de capa branca com ondas azuis, onde se podia ler “Contos Exemplares”. A autora tinha um nome cheio de consoantes. Chamava-se Sophia de Mello Breyner Andresen. Pensei que era estrangeira. Mas pensei nisso muito pouco. E dediquei-me a ler o livro. Nas aulas, lemos e discutimos sobretudo um dos contos. Chamava-se “A viagem” e com ele eu descobri que a literatura (então já tinha ouvido a palavra mas ainda não a entendia bem) podia também ser muito inquietante. Desde esses dias, nunca mais deixei de saber onde estava esse livro. E voltei a ele muitas vezes.

III
Num dia incerto da minha adolescência, a minha irmã chegou a casa com um texto que achara lindíssimo. Tinham-no lido na escola e ela vinha partilhá-lo comigo. Falava de uma Vanina, de Veneza e de um amor com um homem com nome de vento. Ou de vela enfunada. Guidobaldo. Ficámos ambas maravilhadas. E quando eu vi o nome da autora, fiquei muito surpreendida: era a mesma escritora do meu livro inquietante, do meu livro de tantas leituras.
Como podem imaginar, na seguinte Feira do Livro, comprei todos os livros dessa escritora que constavam da edição Fiqueirinhas. O primeiro que li foi “O Cavaleiro da Dinamarca”, para reencontrar Vanina e o seu amor. Depois, “A Fada Oriana”, e por aí fora, até esse misterioso livro que tinha um título que mexia comigo ao ponto de eu ter receio de o ler. Chamava-se “A Floresta”. Quando finalmente o abri, foi como se reencontrasse um velho amigo, um rosto da minha infância que me tivesse sorrido como mais ninguém e do qual eu, por infeliz acidente, tivesse esquecido o nome. Ali estava, intacta e igual à minha memória, a floresta que sempre me fizera olhar com reverência as manchas verdes dos campos. E, com essa revelação, a descoberta de que aquela senhora de nome estrangeiro era, mais do que a Sophia tão conhecida dos cultos, a minha Sophia.

IV
Se os textos de Sophia fossem um tecido, seriam linho. Não só pelo branco, como pelo trabalho que se não vê, como pelas pregas que o tempo nele inscreve sem lhe tirar a nobreza. Sobretudo porque nele nada parece estar em desacordo com o mundo. Como nesta escrita sobre a floresta. Quando voltei a ler este livro depois de saber ser ela também a autora da minha floresta, toda a noção da luz se transfigurou para mim. Aqui, as palavras já não tinham um fundo de luz verde, mas eram ainda inteiras. Era a palavra despida e essencial, “solene e rigorosa” como o próprio verbo do Padre de Varzim de “O Jantar do Bispo”. Uma palavra também ela nua, um verbo despojado e por isso mesmo verdadeiro, tão próximo do linho que toda a escrita se tornava una com o mundo. Palavras tão justas e inteiras como a lua cheia, como o mais perfeito luar.
Sempre que as releio maravilho-me com a sua capacidade de adequar as palavras ao mundo, de as usar sem as gastar, mesmo quando as repete, fazendo-nos senti-las sempre intactas, nuas e essenciais como uma intocada manhã. Tudo isso só podia nascer de uma grande e humilde atenção ao mundo. Na vontade de celebrar o clamor da vida, o coração de todas as coisas, festejado no que sempre senti como um cristianismo primordial e também franciscano. Um cristianismo político. De cidadania e responsabilidade. Um humanismo.
Nos sete contos deste livro (Contos Exemplares), sempre escritos com a mesma contenção da palavra e de todas as formas, da composição concentrada nos parágrafos breves, onde nada mais consta para além do essencial, o assunto somos nós. Nós e a coragem de escolher, de parar, olhar, agir, pensar. E essa coragem afirma-se na atenção dada aos que do mundo nada têm, estando, porém, em tudo, a ele mais intimamente ligados. Nada temos, tudo temos, o tempo é apenas curto ou é muito grande a nossa pressa de chegar. Uma pressa que nos faz perder tudo, até a nós mesmos, como em “A Viagem”. Uma voragem que nos pode fazer ficar parecidos aos que vivem do vazio, ou de criar o vazio dos outros, o que é o mesmo, como em “O Retrato de Mónica”.
São sete contos. Sete como os dias da criação. E aqui está também o mundo. Tal como nós não ousamos desafiar, tal como nós preferimos usar como pretexto de queixa a revolucionar como vontade de mudança. Nos anos 60, e ainda agora. E em todas estas páginas, com todo o sentido do mundo, brotam as palavras que continuam a emocionar-me. A inquietar-me. Como no primeiro dia.

 [Este texto foi escrito a 7 de Março de 2004. Com grande pena minha, nunca consegui dizer a Sophia o quanto a sua escrita me foi e é preciosa.]







A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.