E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


sexta-feira, 28 de maio de 2010

Carta 3 — As leituras e as escritas da escrita

Ultimamente, tenho lido muito pouca literatura. Não é que não goste ou não queira. É só porque as exigências profissionais e académicas me empurram para o ensaio. O problema é que a literatura me faz falta. Preciso sempre das duas coisas em equilíbrio. Aliás, começo a notar problemas na minha oralidade quando a literatura fica mais longe. Também preciso da liberdade que a escrita não ensaística me confere, para poder pensar melhor. Se estiver muito tempo sem escrever livremente, começo a sentir dificuldades em articular frases mais longas. É um processo estranho. Mas é completamente real.
Talvez aconteça assim por eu nunca ter conseguido isolar os campos de experiência. Acho mesmo que essa minha hesitação no logos surge nas situações em que um lado começa a tomar um excesso de protagonismo. Quase como um desequilíbrio magnético. Ou químico, não faço ideia.
Quando era adolescente fazia um pouco de tudo. Dançava, tocava guitarra (enfim, arranhava umas canções dos Beatles que, coitados, nunca mereceram tão pouco), escrevia e desenhava como se tudo fizesse parte do mesmo movimento contínuo. Habituei-me a passear nesses caminhos comunicantes. Quando uma palavra não surgia, eu desenhava — do mesmo modo que passava as aulas da licenciatura a desenhar para me concentrar, o que causou alguma estranheza em alguns docentes mais ortodoxos — ou, simplesmente, dançava até ela me apanhar. Ainda hoje faço gestos quando as palavras me falham. Provavelmente, não esses em que possam estar a pensar, mas gestos largos, algo esvoaçantes (não têm nada de elegante, são só como redes que se lançam no espaço), de que só me dou conta quando se tornam quase excessivos (quando bato sem querer em alguma coisa, ou quando atiro, involuntariamente, com os papéis ao chão); ou, simplesmente, quando alguém me pergunta com ar irónico: "estás bem?".
Infelizmente (para mim, não para os outros), com o passar dos anos, deixei de dançar com tanta frequência, deixei de desenhar (quase totalmente) e deixei de maltratar a minha pobre guitarra (completamente).
Mas mantenho uma necessidade de bailar de leituras em leituras, de imagens em imagens, de sons em sons. É superior a mim. Não o faço para me dar qualquer tipo de aura artística, mas porque faz parte de mim este gosto do "petisco". Não concordo nada com o estreitamento oitocentista, positivista, que tudo compartimenta. Apesar do meu gosto pelo século XIX, estou com o espírito renascentista da multiplicidade das experiências. Não que pretenda ser uma artista renascentista. Nem sequer pretendo ser uma artista. Ou melhor, nem sequer pretendo catalogar-me. Apenas quero ter um vasto leque de experiências que, de acordo com o que me tem ensinado a minha experiência ao longo de 47 anos, me tem feito ver as coisas de uma perspectiva pessoal. Afinal, aquilo que verdadeiramente pretendo.
Volto, portanto, ao início desta carta. Está a faltar-me a literatura. Há muitos meses que ando em volta de ensaios. Há muitos meses que não escrevo nada sem um programa definido. Bem, isso também não significa que, quando escrevo ficção, não haja programa. Mas a verdade é que, mesmo com um programa inicial, por muito definido que esteja, há sempre uma maior liberdade que se reflecte numa palavra que nos leva para uma direcção insuspeita, ou uma circunstância da personagem que surge de repente e nos faz perguntar: "e se?"
No entanto, sempre que estou a escrever um livro de ficção tenho a tentação do ensaio. Por um lado, penso sempre em vários artigos que gostaria de escrever e tenho logo a tentação de começar a ler ensaios a propósito. E, como se isso não chegasse, também tenho a tentação documental para a literatura. Leio sempre vários ensaios sobre o tema central do livro de ficção em questão (do livro que estiver a escrever no momento). Um bocado como fazia o Munari com as encomendas. Primeiro, ia ver a tradição em que o objecto se inscrevia; depois, tentava inovar. Ou seja, tentava contar a história com outros contornos. Digo eu. É isso que eu tento fazer, também.
Às vezes, até tenho a tentação de pôr uma bibliografia teórica no final dos romances. Como quem diz: foi isto que li. Foi com estes instrumentos que construí este lugar e desenhei estas personagens. Mas ainda não o fiz. Talvez um dia o faça.
Outras vezes, enquanto estou obrigada a escrever ensaisticamente, só me apetece largar tudo e escrever livremente, páginas e páginas de ficção, segundo o que me der na gana (muitas delas, naturalmente, acabam no lixo, mas isso é irrelevante para o processo). O que me interessa é escrever. Sobretudo, se no momento em questão não puder fazê-lo. Como agora, por exemplo. Profissional e academicamente, agora e durante os próximos meses, só poderei escrever textos críticos e acabar a tese. Há dias, houve mesmo um amigo que, conhecendo-me bem, me avisou com voz grave: nada de escrever romances, agora, ouviste?
Fiquei calada. Como diria o Fernão Lopes, antes nos calaríamos que escrever coisas falsas. No meu caso, seria... do que dizer coisas falsas. Não sei se posso prometer isso. Porque mesmo andando completamente obcecada e ocupada com os capítulos finais da tese, a verdade é que nada me garante que não comece, lá de longe, como quem não quer a coisa, no meio do caos das frases domadas mas indomáveis, a surgir uma voz que, mal eu me deite, venha contar-me estórias. Desfiadamente, longamente, sem me deixar adormecer. O que é que lhe hei-de fazer, se não ouvi-la?

terça-feira, 18 de maio de 2010

Carta 2 — O lugar da escrita

Gosto de ver casas de escritores. Gosto de ver os espaços em que eles escrevem, os lugares em que organizam os seus livros, os seus papéis, os seus objectos. Como são as mesas a que escrevem, as cadeiras em que se sentam, os candeeiros, os objectos (canetas, máquinas de escrever, computadores...). Gosto também de perceber como organizam os seus tempos.
Gosto porque o meu espaço da escrita fica nas pregas do tempo que sobra. E, como qualquer coisa que fica nas pregas, tem poucas condições logísticas (como agora se diz). O meu espaço é a minha casa. Mais concretamente, uma cadeira na sala da minha casa. A minha casa está cheia de livros, mas não tenho um quarto que seja meu, parafraseando a frase célebre da Virginia Woolf. Nem sequer uma mesa, porque por uma questão pessoal, não gosto de escrever na mesma mesa em que como. Um dia, aquela mesa, porque é grande, ainda será a minha secretária. Isto, claro, quando eu for crescida e tiver uma casa com uma sala de trabalho só para mim, de preferência com uma janela grande a dar para um jardim muito verde e sem relva (mas com muitas aromáticas) e com vista para o mar.
Mas, por enquanto, a minha bolha espacial é uma Poang. Nela me sento, com o meu portátil ao colo, e nela escrevo. Não só a ficção, mas também os textos de crítica, também a tese, também a tradução. Quando preciso de ter mais espaço para os livros (que teimam em respeitar a lei da gravidade e se escapam por entre os braços da cadeira), sento-me no sofá e uso a pequena mesa da sala.
Trabalhar na sala significa fazê-lo no sítio mais nefrálgico da casa a seguir à cozinha. Aqui está o resto da família, a televisão ligada, as conversas cruzadas, o telefone que toca. Só quando as condições de caos se acumulam muito perto de mim é que me incomodam. De resto, consigo perfeitamente trabalhar nestas condições. Talvez por ter passado alguns anos em redações de jornais, habituei-me a trabalhar com ruído em redor. Basicamente, desde que não falem directamente comigo, a coisa corre bem.
Enfim, nestes tempos de grande e perfeitas exigências, se calhar, tenho mesmo um sítio bestial para escrever. Meu e só meu, inalcançável para os outros (embora não de todo, porque basta chamarem-me para eu vir à "janela"): a minha bolha (à parte a parte física da Poang), o meu casulo. Nele vou ouvindo as vozes que me contam as estórias ou fazendo a gestão da informação para os textos de não-ficção. Nele  vou assomando para manter contacto com o mundo. Com esta bolha garanto também que não me ataca a neura do écrã em branco. Quando as ideias não se organizam por qualquer razão, vou fazer outra coisa. Cozinhar, por exemplo. Ou ouvir música. Ou dançar. Ou andar. Manter as mãos ocupadas foi sempre um bom truque contra a angústia.
Muito provavelmente, no dia em que tiver o meu escritório, o tal com janela aberta sobre um jardim verdejante e vista para o Oceano, continuarei a escrever num sítio pouco ortodoxo. Até porque esta bolha (à parte o assento Poang, que se mantém na sala à minha espera) é portátil. E discreta, porque ninguém a vê. E, por isso, anda comigo por todo o lado para onde vou.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Carta 1: Ao fim de muito tempo...

O processo da escrita é, para mim, algo de muito demorado. Ou, melhor dizendo, algo com tempos diferenciados. Da ideia até à sua materialização passam, por vezes, anos. Normalmente, é assim porque a ideia precisa de um corpo que a sirva e esse corpo, para mim, é mais do que o esqueleto da estória. É, sobretudo, o tom da narração. Encontrar o tom (para servir a estória ou uma personagem) pode levar anos.
Mas vou contar-vos como nasceu este projecto.
Em 2002, organizei uma exposição da pintora e figurinista Vera Castro. Foi uma pequena exposição (alguns quadros) que, no entanto, me deixou uma inquietação. A Vera, que depois se tornou uma amiga e que, infelizmente, desapareceu este ano, apresentou 7 pinturas de 7 vestidos. Como figurinista profissional, estava habituada a vestir personagens e essas pinturas (que não eram de desenhos realmente feitos para teatro mas reflectiam a sua vasta experiência nesse meio), muito simples, quase despojadas, com meios claros e despretenciosos, tinham ainda, dentro dos vestidos que as ocupavam, a memória dos corpos que as poderiam ter habitado. Um hálito de memória, uma respiração de mistério, de quando se abre o velho baú do sótão, pairava sobre aquelas telas. Sete, como já disse, para as 7 idades. Um vestido para cada momento da vida de uma personagem. Uma personagem feminina, está claro. Um vestido de baptismo, outro da meninice, outro da juventude, depois o de noiva, logo o fato da senhora casada, o vestido da idade madura e, finalmente, o traje final que serviria de mortalha.
Nesse Verão (a exposição foi de Junho a Setembro), fui para férias com uma enorme vontade de escrever um conto a partir daquelas pinturas. Falei nisso à Vera, com quem então tinha ainda uma relação algo cerimoniosa, que recebeu bem essa ideia. Mas o Verão passou e a estória não se corporizou.

Passaram-se, entretanto, outros verões. E, cerca de três ou quatro mais tarde, a ideia voltou com uma metamorfose: a de escrever um conto sobre os cinco sentidos.
Os cinco sentidos são um tema recorrente na História da Arte, sobretudo, naturalmente, a partir da Idade Moderna. Há vários anos, em Madrid, vi no Prado uma preciosa exposição sobre o tema. Tinha, portanto, uma bibliografia de partida em que me apoiar, imagens sobre as quais podia deixar a minha imaginação vaguear e uma insistente vontade de escrever sobre (enfim: a partir de) aquelas 7 telas da Vera.
Comecei, finalmente, a escrever.
Rapidamente o conto tomou "vida própria". Ao fim de pouco tempo, decidi que, para conter alguma coerência, tinha de transformar as minhas notas em cinco contos. Cada um para o seu sentido. E assim me dediquei a trabalhar o primeiro: o tacto. Não por qualquer tipo de ordem superior, mas porque foi o que mais me sugeria na altura. Até porque, tendo passado dos 40 anos há algum tempo, e tendo várias amigas na mesma faixa etária, comecei a ouvir, com uma frequência assustadora, referências à pele: ao seu envelhecimento.
Devo dizer que, até agora, pelo menos, a idade foi sempre para mim um processo de pura vaidade (uma espécie de estatuto cronológico para reivindicar um direito a não ser incomodada com coisas sem sentido). Aos vinte e tal já eu gostava de proclamar que tinha quase trinta; aos trinta e cinco comecei a dizer coisas como "tenho quase quarenta anos"; depois dos quarenta, passei simplesmente a dizer "já tenho mais de quarenta anos, não me aborreçam". Agora, com 47, obviamente, proclamo a proximidade dos 50... A pele reflecte isso, como é óbvio, mas, para mim, tem sido um fascínio observar como o meu corpo e, sobretudo, a sua superfície, reflecte o tempo. Olho para a pele como um espelho, como uma narrativa (como um desenho; provavelmente por deformação profissional). Como um suporte onde o tempo e a vida vão traçando o nosso mapa particular. Ora, com um suporte que tudo revela de modo tão extraordinário, como poderemos pensar em escondê-lo? Em tentar apagá-lo, em dissimulá-lo? À minha volta, por constrangimentos vários, algumas amigas e colegas martirizavam-se diariamente com o registo paulatino do tempo sobre as suas peles. A pele, o órgão maior do corpo, aquele com que o nosso corpo se fecha; aquele com que tocamos nos outros e através do qual nos deixamos tocar... A pele é muito mais do que um sítio para pôr cremes e fingir que se tem outra idade... Enfim, foi tudo isto que me lançou na perseguição de um olhar sobre a pele, logo, sobre o tacto. Como vêem, sem qualquer tipo de ordem "superior", foi essa, tão simplesmente, a razão de a primeira parte da estória se debruçar sobre este sentido e este património.
Assim nasceu o primeiro conto que, cedo, se autonomizou e arvorou importâncias volumétricas que exigiram a sua passagem a romance. E assim uma simples ideia de um conto se transformou na megalómana ideia de 5 romances (uma pentalogia, um palavrão!) sobre os cinco sentidos.
Cartografia Íntima surgiu, assim. O título tem também a ver com o nosso passado colectivo; enquanto povo, tivemos um papel importante no redesenhar dos contornos do mundo: a cartografia. E, cada um de nós, ao viver, faz as suas próprias viagens. Não encontra um mapa já feito à partida; antes vai traçando o seu itinerário. Escrevendo as suas descobertas. Registando, como um cartógrafo, as suas coordenadas. As cartas (a que mais tarde se chamaram mapas), têm hoje para nós uma associação epistolar. A de notas trocadas em situação mais particular, privada.
Como vêem, dos vestidos da Vera até à narrativa da vida de Helena, muita água correu. Entre ela, também, a leitura da Odisseia, na versão de Frederico Lourenço.
Deixem-me contar-vos mais este desvio no meu processo de escrita. Uma noite, assistindo a uma entrevista de Frederico Lourenço, ele mencionou que, antigamente, a Odisseia era lida em família, ao serão. Narrativa encantatória, ligava gerações, desde os pequenos aos velhos. A ideia agradou-me. E propus ao meu filho que, então tinha 5 anos e que com frequência me pedia para lhe contar estórias gregas, que lêssemos aquele livro grande (não a versão para crianças, mas o outro)... cheio de estórias gregas. Fizemos um acordo: se ele achasse chato, parávamos. Começámos a ler em Setembro e, todas as noites, mês após mês, fomos navegando no mar cor de vinho de Homero. Aportámos a Ítaca em Março, tendo, sem querer, passado na Grécia antiga o período de tempo que Perséfone passa no Hades, longe de Deméter, sua mãe.
Noite após noite, a Aurora de róseos dedos e a deusa de olhos garços acompanharam o embalar das nossas conversas e ficaram a bailar na minha cabeça. Sem querer, a personagem central da minha viagem pelo primeiro sentido veio a chamar-se Helena (a grande causadora da guerra e da difícil jornada de Ulisses), com uma avó de nome Beatriz: não como a do Dante, como tão generosamente sugeriu a Dóris Graça-Dias no lançamento do livro, mas por ser a que traz a felicidade, como tão luminosamente explicou há anos um outro escritor que admiro, Amin Malouf, em "O século primeiro depois de Beatriz". Se o meu filho tivesse sido rapariga, ter-se-ia chamado Beatriz, em homenagem ao Malouf. Assim, criei essa mulher a quem espero prestar o devido reconhecimento no terceiro volume desta estória.
A conversa já vai longa... E, como sempre, como as cerejas, mistura o contável e o incontável. O lógico e o emocional.
Acabei por fazer, cruzando leituras e memórias de outras leituras, uma tentativa de dar casa e corpo aos vários vestidos da Vera Castro. Não quis (ou não soube) limitar-me a enchê-los com uma vida só. Preferi dar-lhes múltiplos pontos de vista, diversas vivências e memórias.
A próxima é a da fazedora dos vestidos. Não a Vera, mas uma personagem que nem sequer tem nada a ver com ela, a não ser o facto de desenhar vestidos e de os fazer.
O seguinte será o momento de Mariana. Espero que continuem por aí. Porque, nos próximos tempos, vou partilhar convosco o que andei a ler e a ver, para dar corpo a esta mulher.
Até breve!

A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.