E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Carta 17: Livros assim como caixas

Tive muitas vezes a sensação de que os livros são como caixas. Não só caixas de tesouros ou de inquietações, mas muitas vezes também caixas de música.
Isso deve ter a ver com uma memória de infância. A minha mãe tem, desde há muitos anos, uma caixa de jóias que tem também um mecanismo musical. Se se der corda, ao levantar a tampa começa-se a ouvir umas notas encantatórias que acompanham o tempo de escolher os brincos, um anel, um pregador. A caixa é preta e tem incrustações em madre-pérola. Uma prenda de alguém que esteve na China. Há muitos anos. Acho que antes de eu nascer.
Dentro da caixa há compartimentos. Como capítulos. Portas para outras estórias. Manias minhas. Isto de achar que as estórias são como acontecimentos que se encaixam uns nos outros e que se continuam ou mudam de rumo. Como as pessoas. Como os livros.
À conta da música desta caixa, também para mim, por associação, os livros acabaram por funcionar como caixas de voz. Como caixas de música. "As velas ardem até ao fim" do Sandor Marai, por exemplo. Abro-o de repente. E de lá se ergue uma voz que conta. Como uma melodia. "O memorial do convento", do Saramago, por exemplo. Porque de lá se ergue a voz do autor. Rumorosa e irónica. E generosa.
Às vezes, os livros também funcionam para mim como máquinas do tempo. Especialmente quando são biografias. Quando há vários anos li "L'École de Barbizon et le paysage français au XIXe siècle" do escritor e crítico Jean Bouret, a empatia que ele nos consegue criar com aqueles pintores é tão grande que não pude deixar de sentir uma enorme tristeza com a aproximação das últimas páginas. A pouco e pouco, essas páginas avançavam para o fim das suas vidas e a cada uma que voltava era como afastar-me um pouco mais daqueles pintores. Até que o livro terminou. Tal como as suas vidas. Mas, exactamente como uma caixa mágica que nos permitisse viajar no tempo, ao voltar a abrir o livro nas primeiras páginas, lá os voltava a encontrar, jovens e cheios de energia para resistir, cheios de vontade e de cumplicidade, de olhos cheios de luz a caminho da floresta de Fontainebleau.
Talvez também me tenha apaixonado por esses pintores porque eles se apaixonaram pelos seus sonhos e não os deixaram perdidos. Ou talvez também me tivesse apaixonado por esses pintores porque eles passaram a vida entre as árvores e as árvores cantam aos meus ouvidos desde que ouvi ler "A floresta", da Sophia de Mello Breyner quando eu tinha 5 anos.
Enfim, livros para falar de outros livros.



Resolvi hoje escrever sobre estas coisas, não só porque as árvores estão douradas e ruivas e à beira de ficarem quedas e mudas, dormindo sob a chuva. (Tenho sempre a sensação de que as árvores no Inverno — quando a sua anatomia é mais aparente, como dizia o Henry Moore — dormem; e que se aconchegam na terra, como nós fazemos na cama, quando a chuva cai.) Foi também porque estou a ler um livro do Fernando Savater "A arte do ensaio: ensaios sobre a cultura universal" que é exactamente como uma caixa cheias de caixas lá dentro. Algumas das caixas que ele abre eu já abri também há anos. Outras, nunca abri. Mas fico com vontade de as abrir todas. De novo ou pela primeira vez.
Há uma outra caixa que eu abro também com alguma frequência: o Roland Barthes, especialmente a caixa dos "Fragmentos de um discurso amoroso". De cada vez que a abro, não posso deixar de sentir que é uma caixa nova. Que guarda e revela coisas que não vi da última vez; que ainda não estou a ver.
Nunca sentiram que há coisas que, para serem vistas, precisam de esperar por outras visões?
É isso que sinto, muitas vezes. Não só que os livros nos escolhem, porque só eles sabem quando estamos prontos para nos abrirmos a eles. Mas também que há livros de uma paciência infinita. Que nos vão contando, cantando, encantando, baralhando... enquanto nós somos demasiado novos, demasiado incultos ou demasiado apressados para os acolhermos com precisão.
Os livros até sabem aquilo que os seus autores desconhecem. Ou que os seus leitores ignoram. Por exemplo: que a precisão é sempre outra coisa a cada instante que passa. Que a precisão pode até ter outro sentido: o da necessidade. Que as necessidades são sempre diferentes. Por isso eles se nos revelam aos poucos, de cada vez.
Os livros são mesmo objectos absolutamente mágicos. Olho para eles e sinto-me orgulhosa de os ter por perto. Sinto-me feliz por eles se manterem aqui. Não consigo desfazer-me dos meus livros. Mesmo que eles não sejam meus mas eu deles. Um dia, ainda escreverei sobre aqueles que emprestei e nunca mais vi. Ficaram a pairar em ausência cá em casa. Como portas fantasmas cujo lugar e convite distante eu ouço ao longe ao passar pelas estantes.

sábado, 6 de novembro de 2010

Carta 16: Novembro, mês de afectos

Novembro é um mês de afectos. Quando era pequena não tinha amigos que fizessem anos em Novembro. Mas tinha aulas e coisas para fazer com os amigos e a escola. Nos primeiros dias, como agora, ainda havia calor. Parecia sempre uma espécie de permissão para não vestir ainda os casacos. Mas já havia castanhas no mercado, castanhas assadas em casa ou na rua, folhas secas pelo chão e uma luz doirada que indiciava outros dias. Uns dias depois do S. Martinho, a temperatura caía a pique (uns 10 graus, às vezes mais...) e toda a gente se queixava do frio súbito, como se fosse uma grande surpresa. A luz, contudo, continuava doirada e magnífica.

Quando fui para a faculdade, Novembro era o mês em que arrancavam de facto as aulas. Era quando começávamos a trabalhar, mais a sério. Mas era também o mês em que púnhamos a conversa em dia, em que falávamos dos livros que nos encantavam e em que íamos ao cinema. De novo. Com os amigos, depois das férias.
Entretanto, comecei a ter amigos que faziam anos em Novembro. O Zé Ricardo, por exemplo.

Uns anos mais tarde, já a faculdade tinha ficado para trás, conheci o meu marido. Que também faz anos em Novembro. Passámos a fazer, com alguma frequência, umas viagens outonais, para celebrar o aniversário e para experimentar o começo do frio, que tanto nos agrada. Uns anos depois, nasceu a minha sobrinha: também em Novembro. Alguns anos mais tarde, ganhei uma nova cunhada: que também faz anos em Novembro.



Novembro é, por isso, para mim, um mês de afectos e sensações calorosas. Mantendo ou não os magustos — e hoje faltei a um, porque o email, estupidamente, mandou o convite para o junk mail... e só o encontrei à noite por acaso... —, Novembro é um mês que associo aos encontros, aos jantares com os amigos e a família, às mensagens ou aos telefonemas para dar os parabéns aos amigos que estão longe. Apetece andar de bicicleta, passear na praia, andar na cidade. Apanhar chuva e sentir o primeiro frio. Ou aproveitar estes raios de sol acolhedores.
Novembro é um mês para celebrar os prazeres da vida. Tenho pena de que não haja mais árvores com folhas ruivas, e que as pessoas não deixem à noite as janelas sem cortinas, como na Europa Central, para olharmos lá para dentro e ver a luz e as cores, e os seus habitantes passando como num filme, ou sentados nas salas a conversar ou a ler. Como num quadro flamengo do século XVII.
Lá terei de ir à estante, à procura de qualquer coisa. Talvez uma revisitação. A Túlipa Negra, do Alexandre Dumas, por exemplo. Em Novembro também apetece voltar a olhar para dentro. Que é o que se faz quando se reencontra um velho amigo. Como um livro lido há mais de trinta anos.
Daqui a dias, depois do S. Martinho, a temperatura irá descer bruscamente. Uns 10 graus ou mais. E as pessoas queixar-se-ão, com ar chocado, da mudança brusca do tempo, do inesperado dessa mudança. Eu irei comprar mais castanhas e irei comê-las devagar, à beira de um livro e de outros aconchegos.

A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.