E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Carta 18: Querido Pai Natal

Eu também acreditei no Pai Natal. Durante alguns poucos anos da minha vida o Natal teve esse mistério e essa magia vestida de vermelho.
Na noite de 24 para 25, eu deitava-me com a excitação normal da antecipação. Tinha já feito a carta com os pedidos ao Pai Natal e esperava o que ele considerasse pertinente oferecer-me pelo menos alguns. Tenho uma ideia vaga dos meus pedidos gerais. Uma boneca, um Lego... Lembro-me de um desejo muito específico: um frigorífico pequeno, uma perfeita miniatura. A porta abria-se e lá dentro havia prateleiras removíveis, um congelador cuja porta se abria, e um pacote de manteiga, um cesto com ovos, uma garrafa de leite... Era mágico e esteve exposto durante semanas na montra da loja do Gás Cidla. Eu passava por lá quase todos os dias, depois da escola. Nesse ano, lembro-me de ter dito à minha mãe que gostava que o Pai Natal me desse aquele frigorífico. Contava com a possibilidade de ele poder passar no buraco da chaminé, que era bastante estreito, mas que tinha o tamanho certo para deixar descer a caixa do embrulho.
As dimensões do buraco da chaminé já me tinham feito inquirir os meus pais quanto à possibilidade de o Pai Natal poder deixar embrulhos grandes na base do fogão. O meu pai, sempre pragmático, explicou que obviamente esses embrulhos nunca poderiam passar em tão exíguo espaço, pelo que eles ficavam atentos e abriam a porta das traseiras para que o Pai Natal entrasse com comodidade e colocasse as prendas onde devido.
Por isso, na noite de 24, antes de me ir deitar, eu verificava se o sapato estava em posição e se a porta das traseiras estava no trinco, se a campainha funcionava, se, se se...

Na verdade, nunca acreditei que aquele frigorífico me viesse parar às mãos. Mas desejá-lo já era maravilhoso.
Nesse Natal em que o meu pai estava longe, na América, eu fiquei sozinha com a minha mãe. Nessa altura, eu ainda acreditava em deus, e todos os dias ao entrar em casa eu ia direita ao pinheiro, ajoelhava-me em frente ao presépio e pensava no meu pai lá longe e se o Pai Natal se iria lembrar de mim.

Na manhã do dia 25, quando cheguei à cozinha, havia presentes em redor do fogão. Um deles tinha um tamanho que lhe tinha permitido, com toda a clareza, passar pelo buraco da chaminé. Fiquei muito excitada. Abri-o com enorme expectativa e lá dentro estava o meu maravilhoso frigorífico.
Pequenino e perfeito, com as suas prateleiras móveis, o congelador com porta de abrir, uma luzinha que acendia quando se abria a porta, os pequenos pacotes (de manteiga e não só), a garrafinha de leite e a cestinha com 3 ovos. Tudo se podia mexer, nada era cenário, apenas a escala, deliciosa, à altura da minha boneca preferida: a Patch.
As dúvidas que eu já começava a ter quanto à existência do Pai Natal, sobretudo pelas observações de colegas que já estavam mais informadas, eclipsaram-se com a adequação total: da concretização do sonho (era impossível o meu pai tê-lo comprado porque estava a milhares de quilómetros de distância; e como a minha mãe chegava do trabalho já depois de a loja ter fechado era também impossível que ela tivesse tratado disso; logo, só podia mesmo ter sido o Pai Natal) à evidência da possibilidade física da passagem do embrulho pela abertura da chaminé.

Ainda tenho esse frigorífico. Está impecável, apesar de terem passado entretanto exactamente 40 anos.
Eu tinha sete, a caminho dos oito. A caminho dos oito o meu pai voltou da América, com as novidades dos meses lá passados no inverno frio de Great Lakes, e que incluíam não apenas as recordações dos colegas do curso que lá fez, como os novos hábitos: flocos de milho ao pequeno-almoço (que eu odiava, porque sempre detestei papas e não suportava os flocos com leite todos moles e excessivamente doces) e as chiclets de caixa amarela, um sabor verdadeiramente novo para quem, como eu, só conhecia as pastilhas pirata e esse sim muito interessante.
Mas isso foi depois. Desse Natal, provavelmente o último em que eu acreditei no Pai Natal, um bocadinho antes de eu crescer, e dois anos antes de ter perdido deus para sempre, eu senti sobretudo a falta dos meus afectos. O meu pai, tão longe.

Apesar da minha descrença, o Pai Natal, no entanto, tem sido generoso comigo. Ao longo dos anos, tenho mantido a família por perto. Uma família que tem aumentado, embora também já tenha algumas perdas.
Tenho os meus pais, a minha irmã (que veio depois desse natal de há 40 anos), a família dela, a minha também. A nossa família tornou-se maior. E, com o tempo, as cartas ao Pai Natal foram mudando.
Não se iludem: não deixei de as escrever. Mas agora entrego-as directamente aos dois responsáveis: o meu pai e a minha mãe. As cartas levam sugestões. É uma boa maneira de evitar repetição de livros ou filmes, por exemplo.

Diria, também, que o Pai Natal tem sido obstinado. Não tem deixado que nos esqueçamos dele. É certo que a presença de crianças na família tem feito honra à sua continuação. Um pouco mais cedo do que eu, o meu filho usou da lógica e percebeu que tínhamos de ser nós a oferecer as prendas. Achou que a ideia do velhote e das cartas e das viagens relâmpago era boa, mas pouco razoável. E até pouco justa. E topou a cena toda. Tinha seis anos. Mas este ano, e enquanto a minha sobrinha acreditar, nós vamos reencenar o mistério. 

No meio da confusão destes dias, ainda me faltam algumas prendas e não tenho, desta vez, a mais pequena ideia do que podia escrever na minha própria carta. Coisas consumíveis, sem dúvida: um ou outro livro, chá, azeite, compotas, café, talvez um queijo ou um vinho alentejano. Mas sobretudo a esplendorosa galhofa que estala sempre que nos reunimos. 
Essa não é preciso embrulhar. Nem carece de espaços especiais para passar. Circula livremente. O Natal é mesmo uma festa. Mesmo que, no nosso caso, o presépio seja uma encenação, a árvore seja o mais importante mesmo que seja de plástico, e deus esteja ausente para a maior parte dos membros da família. 
Entre a tradição e o presente, nós mantivemos o eixo do simbólico e, entre ateus e agnósticos, com franca minoria de católicos e mais nenhumas confissões, um espírito sinceramente re-ligioso. Porque o que fazemos no Natal é um acto de re-ligar. Entre nós, entre todos. Pelo puro prazer de estarmos juntos. 

Vou reformular o início. Eu acredito no Pai Natal. É esta magia algo idiota de gostar de ver filmes com neve e pinheiros e embrulhos e estórias de amor. Coisas pirosas e christmas carols. É o desejo de bacalhau e bolo-rei e a fobia dos centros comerciais de que fujo o mais que posso. E a antecipação do almoço do dia 25, em que nos reunimos todos.

Penso que o Pai Natal ficaria contente.
Um Natal quentinho para todos!




A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.