E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


sábado, 26 de fevereiro de 2011

Carta 19: As palavras sobre os riscos dos outros

Escrever não é um gosto. É uma natureza. E como qualquer natureza tem uma organização interna. Ou, se quisermos, necessidades próprias. Há muito que senti que compreendo melhor uma coisa quando escrevo sobre ela. A escrita tem diversas exigências, por isso. Para mim, é-me difícil ler um livro sem o sublinhar e anotar à margem. Torna-se, por isso, aborrecido para alguém que o leia depois. Mas a verdade é que eu sou muito ciosa e ciumenta dos meus livros. Posso emprestá-los, é verdade. Mas gosto pouco de o fazer. Como também não gosto de ler livros emprestados. Com um livro emprestado, mesmo que seja por um amigo, há uma cerimónia, como ir jantar a casa de alguém que se conhece mal.
Vou desviar-me um bocado e já volto aos livros.
Nas casas dos outros, mesmo dos amigos, mesmo dos familiares, não se anda por lá a abrir portas que se encontrem fechadas, como não se abrem as gavetas dos outros, nem as cartas dos outros. Nunca percebi o problema da estória do Barba Azul, por isso mesmo. Nunca me interessou o que os outros guardam como secreto. Acredito que, para alguém que fique sozinho numa casa, haver uma porta fechada sem qualquer justificação, apenas porque sim, seja mais do que humanamente se pode suportar. Mas, para mim, que nunca fiquei muito tempo em casa de um alguém tão estranho como esse Barba Azul, as portas fechadas sempre me despertaram escassa curiosidade. Sempre preferi aquilo que era partilhado, e daí sempre me terem interessado mais as partilhas da ficção do que ficcionar sobre a vida dos vizinhos, espreitar as cartas alheias ou espiar por buracos da fechadura. Sempre me apeteceu mais ler o que está visível, à frente de todos e que pode ou não revelar. Para caixotes fechados só a história. Essa, sim. De resto, they can keep it.
Volto aos livros.
Ler um livro sem o sublinhar ou anotar foi, sempre, para mim, uma dificuldade. Enfim... "sempre"... No princípio, quando os professores nos mandavam fazer anotações nos livros eu ficava reticente. Estava a sujá-los. Mas depois percebi que o podia fazer a lápis. Uma maneira de fingir que, um dia, se quisesse, podia apagar essas nódoas... Com o tempo, esse gesto, que passei depois a associar ao trabalho (sublinhava os livros de estudo), passou a ser quotidiano. Lesse o que lesse, desde que fosse em livro, eu precisava de anotar.
A coisa tornou-se mais urgente quando passei a fazer crítica literária, há mais de vinte anos. Como nunca gostei de fazer fichas de leitura, tomava as minhas notas no corpo do livro. Assim encontrava depois as citações, as referências aos assuntos que me interessava desenvolver, as marcas do que me fazia rir, do que me comovia, do que me surpreendia, do que me fazia transportar para outros sítios.
Entretanto, compreendi também que compreendo melhor um assunto quando escrevo sobre ele. Sobretudo, como é expectável, porque a escrita, em especial a que se destina a ser publicada, tem de ser (ou deve) clara. Passei a querer escrever sobre os livros que mais me fascinavam, ou sobre os livros que descobria, para partilhar as razões do fascínio ou da descoberta.
Segui, sem dar por isso, um método que, durante alguns anos da minha adolescência, me foi útil para perceber com clareza como "via" os meus colegas e amigos: dos catorze aos vinte e poucos anos, desenhei com bastante regularidade. À parte os desenhos mais livres e imaginativos, gostava especialmente do exercício do retrato. Percebi aquilo que qualquer desenhador sabe: que se vê melhor (incomparavelmente melhor, garanto aos que nunca fizeram a experiência!) quando se desenha.
O desenho é analítico, selectivo, racional, expressivo, reflectivo, organizador, inesperado, revelador... é um admirável exercício. Tolamente, deixei de desenhar (nunca deixei de rabiscar e tenho noção de que a minha mão trata de me ajudar à concentração com esse movimento), mas houve uma coisa que ficou desse tempo: o gosto de ver desenho, de olhar para o resultado das sínteses dos outros.
Como sempre, quando tenho um convite ou a necessidade de escrever um texto sobre a obra de algum artista, parto sempre com essa vontade de descoberta. Sei que o que via antes desse exercício não é o mesmo que vou ver no processo da escrita. A escrita sobre um trabalho plástico, para mim, é o verdadeiro exercício do olhar. Olho para as obras como se espreita um motivo para o desenhar. Os olhos vagueiam, observam, perdem-se, inquirem. E só assim descobrem. A escrita, como o desenho, impõe um ritmo de entrega. Descobrir o que um pintor, um escultor, um desenhador, coloca numa obra, como explora vias pessoais e expõe os seus processos e as dúvidas, as suas descobertas, é o essencial do prazer dessas linhas. Umas e outras se cruzam, de um modo íntimo. Duas expressões pessoais que podem coincidir ou não, mas que entram em diálogo. Tenho sempre algum receio de estar a ver coisas que o autor não quis lá pôr. Mas é um risco legítimo. Também já outros leram em textos meus assuntos que eu nunca pensei que lá estivessem. É mesmo assim.
Não consigo explicar melhor porque me dá tanto prazer o desafio de escrever sobre os riscos dos outros. Da generosidade de se colocarem nas minhas mãos, como se fosse para eu lhes fazer o retrato. É claro que não é deles que falo, mas das suas obras. É claro que é deles que falo, porque é do seu fazer, da sua natureza, que me ocupo.
Vem isto a propósito de três textos em que me enredei (e me enredo) nos últimos tempos. Um sobre as obras do pintor Mário Rita, para a sua exposição agora patente no Centro Cultural de Cascais; outro para a próxima exposição da pintora Beatriz Horta Correia, na Galeria Gomes Alves, em Guimarães; e um outro em curso, para a Sofia Areal, pintora que muito admiro e sobre cuja obra já escrevi várias vezes. É um desafio diferente do dos outros dois textos, primeiros exercícios sobre as obras dos seus autores. No caso de Sofia, de cujo trabalho já escrevo há dez anos, é fenomenal observar o que tem mudado. O que tem ficado. O que se depura. O que se arrisca. O que se teima. O que se resiste.
São cartografias (essas cartas de territórios) em construção. Peles que mostram o que tempo nelas inscreve. E eu no meio. A ver e a pensar sobre isso. É uma felicidade.
Obrigada.

A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.