Na noite de 24 para 25, eu deitava-me com a excitação normal da antecipação. Tinha já feito a carta com os pedidos ao Pai Natal e esperava o que ele considerasse pertinente oferecer-me pelo menos alguns. Tenho uma ideia vaga dos meus pedidos gerais. Uma boneca, um Lego... Lembro-me de um desejo muito específico: um frigorífico pequeno, uma perfeita miniatura. A porta abria-se e lá dentro havia prateleiras removíveis, um congelador cuja porta se abria, e um pacote de manteiga, um cesto com ovos, uma garrafa de leite... Era mágico e esteve exposto durante semanas na montra da loja do Gás Cidla. Eu passava por lá quase todos os dias, depois da escola. Nesse ano, lembro-me de ter dito à minha mãe que gostava que o Pai Natal me desse aquele frigorífico. Contava com a possibilidade de ele poder passar no buraco da chaminé, que era bastante estreito, mas que tinha o tamanho certo para deixar descer a caixa do embrulho.
As dimensões do buraco da chaminé já me tinham feito inquirir os meus pais quanto à possibilidade de o Pai Natal poder deixar embrulhos grandes na base do fogão. O meu pai, sempre pragmático, explicou que obviamente esses embrulhos nunca poderiam passar em tão exíguo espaço, pelo que eles ficavam atentos e abriam a porta das traseiras para que o Pai Natal entrasse com comodidade e colocasse as prendas onde devido.
Por isso, na noite de 24, antes de me ir deitar, eu verificava se o sapato estava em posição e se a porta das traseiras estava no trinco, se a campainha funcionava, se, se se...
Na verdade, nunca acreditei que aquele frigorífico me viesse parar às mãos. Mas desejá-lo já era maravilhoso.
Nesse Natal em que o meu pai estava longe, na América, eu fiquei sozinha com a minha mãe. Nessa altura, eu ainda acreditava em deus, e todos os dias ao entrar em casa eu ia direita ao pinheiro, ajoelhava-me em frente ao presépio e pensava no meu pai lá longe e se o Pai Natal se iria lembrar de mim.
Na manhã do dia 25, quando cheguei à cozinha, havia presentes em redor do fogão. Um deles tinha um tamanho que lhe tinha permitido, com toda a clareza, passar pelo buraco da chaminé. Fiquei muito excitada. Abri-o com enorme expectativa e lá dentro estava o meu maravilhoso frigorífico.
Pequenino e perfeito, com as suas prateleiras móveis, o congelador com porta de abrir, uma luzinha que acendia quando se abria a porta, os pequenos pacotes (de manteiga e não só), a garrafinha de leite e a cestinha com 3 ovos. Tudo se podia mexer, nada era cenário, apenas a escala, deliciosa, à altura da minha boneca preferida: a Patch.
As dúvidas que eu já começava a ter quanto à existência do Pai Natal, sobretudo pelas observações de colegas que já estavam mais informadas, eclipsaram-se com a adequação total: da concretização do sonho (era impossível o meu pai tê-lo comprado porque estava a milhares de quilómetros de distância; e como a minha mãe chegava do trabalho já depois de a loja ter fechado era também impossível que ela tivesse tratado disso; logo, só podia mesmo ter sido o Pai Natal) à evidência da possibilidade física da passagem do embrulho pela abertura da chaminé.
Ainda tenho esse frigorífico. Está impecável, apesar de terem passado entretanto exactamente 40 anos.
Eu tinha sete, a caminho dos oito. A caminho dos oito o meu pai voltou da América, com as novidades dos meses lá passados no inverno frio de Great Lakes, e que incluíam não apenas as recordações dos colegas do curso que lá fez, como os novos hábitos: flocos de milho ao pequeno-almoço (que eu odiava, porque sempre detestei papas e não suportava os flocos com leite todos moles e excessivamente doces) e as chiclets de caixa amarela, um sabor verdadeiramente novo para quem, como eu, só conhecia as pastilhas pirata e esse sim muito interessante.
Mas isso foi depois. Desse Natal, provavelmente o último em que eu acreditei no Pai Natal, um bocadinho antes de eu crescer, e dois anos antes de ter perdido deus para sempre, eu senti sobretudo a falta dos meus afectos. O meu pai, tão longe.
Apesar da minha descrença, o Pai Natal, no entanto, tem sido generoso comigo. Ao longo dos anos, tenho mantido a família por perto. Uma família que tem aumentado, embora também já tenha algumas perdas.
Tenho os meus pais, a minha irmã (que veio depois desse natal de há 40 anos), a família dela, a minha também. A nossa família tornou-se maior. E, com o tempo, as cartas ao Pai Natal foram mudando.
Não se iludem: não deixei de as escrever. Mas agora entrego-as directamente aos dois responsáveis: o meu pai e a minha mãe. As cartas levam sugestões. É uma boa maneira de evitar repetição de livros ou filmes, por exemplo.
Diria, também, que o Pai Natal tem sido obstinado. Não tem deixado que nos esqueçamos dele. É certo que a presença de crianças na família tem feito honra à sua continuação. Um pouco mais cedo do que eu, o meu filho usou da lógica e percebeu que tínhamos de ser nós a oferecer as prendas. Achou que a ideia do velhote e das cartas e das viagens relâmpago era boa, mas pouco razoável. E até pouco justa. E topou a cena toda. Tinha seis anos. Mas este ano, e enquanto a minha sobrinha acreditar, nós vamos reencenar o mistério.
No meio da confusão destes dias, ainda me faltam algumas prendas e não tenho, desta vez, a mais pequena ideia do que podia escrever na minha própria carta. Coisas consumíveis, sem dúvida: um ou outro livro, chá, azeite, compotas, café, talvez um queijo ou um vinho alentejano. Mas sobretudo a esplendorosa galhofa que estala sempre que nos reunimos.
Essa não é preciso embrulhar. Nem carece de espaços especiais para passar. Circula livremente. O Natal é mesmo uma festa. Mesmo que, no nosso caso, o presépio seja uma encenação, a árvore seja o mais importante mesmo que seja de plástico, e deus esteja ausente para a maior parte dos membros da família.
Entre a tradição e o presente, nós mantivemos o eixo do simbólico e, entre ateus e agnósticos, com franca minoria de católicos e mais nenhumas confissões, um espírito sinceramente re-ligioso. Porque o que fazemos no Natal é um acto de re-ligar. Entre nós, entre todos. Pelo puro prazer de estarmos juntos.
Vou reformular o início. Eu acredito no Pai Natal. É esta magia algo idiota de gostar de ver filmes com neve e pinheiros e embrulhos e estórias de amor. Coisas pirosas e christmas carols. É o desejo de bacalhau e bolo-rei e a fobia dos centros comerciais de que fujo o mais que posso. E a antecipação do almoço do dia 25, em que nos reunimos todos.
Penso que o Pai Natal ficaria contente.
Um Natal quentinho para todos!