I
Quando eu era miúda, uma pessoa, de quem recordo apenas o gosto com que abria os livros e nos lia estórias, leu um dia um texto que marcou para sempre o meu imaginário de floresta. Eu não sabia o nome do autor, nem o título da obra, mas nada disso importava. Aquela imagem de uma luz verde perfeita, de um lugar mágico, onde eram possíveis encontros poderosos e verdadeiros, morada de amigos e anões, mundo fabuloso onde as noites eram profundas e perigosas e os dias misteriosos e excitantes nunca mais me abandonou. Até hoje. Mesmo sem saber quem teria escrito aquela estória com a qual eu percebi que a literatura (mesmo que ainda não conhecesse a palavra) era a coisa mais mágica do mundo.
II
No ano lectivo de 1973-74, estava eu no ciclo preparatório e a disciplina de Moral e Religião era ainda obrigatória. Alguns colegas queixavam-se da matéria, triste e aborrecida. Na nossa turma, um professor pouco ortodoxo escolhera, contudo, um método infalível de nos apaixonar e inquietar. Em vez de nos oferecer mandamentos e imperativos, deu-nos a ler um livro pequenino, de capa branca com ondas azuis, onde se podia ler “Contos Exemplares”. A autora tinha um nome cheio de consoantes. Chamava-se Sophia de Mello Breyner Andresen. Pensei que era estrangeira. Mas pensei nisso muito pouco. E dediquei-me a ler o livro. Nas aulas, lemos e discutimos sobretudo um dos contos. Chamava-se “A viagem” e com ele eu descobri que a literatura (então já tinha ouvido a palavra mas ainda não a entendia bem) podia também ser muito inquietante. Desde esses dias, nunca mais deixei de saber onde estava esse livro. E voltei a ele muitas vezes.
III
Num dia incerto da minha adolescência, a minha irmã chegou a casa com um texto que achara lindíssimo. Tinham-no lido na escola e ela vinha partilhá-lo comigo. Falava de uma Vanina, de Veneza e de um amor com um homem com nome de vento. Ou de vela enfunada. Guidobaldo. Ficámos ambas maravilhadas. E quando eu vi o nome da autora, fiquei muito surpreendida: era a mesma escritora do meu livro inquietante, do meu livro de tantas leituras.
Como podem imaginar, na seguinte Feira do Livro, comprei todos os livros dessa escritora que constavam da edição Fiqueirinhas. O primeiro que li foi “O Cavaleiro da Dinamarca”, para reencontrar Vanina e o seu amor. Depois, “A Fada Oriana”, e por aí fora, até esse misterioso livro que tinha um título que mexia comigo ao ponto de eu ter receio de o ler. Chamava-se “A Floresta”. Quando finalmente o abri, foi como se reencontrasse um velho amigo, um rosto da minha infância que me tivesse sorrido como mais ninguém e do qual eu, por infeliz acidente, tivesse esquecido o nome. Ali estava, intacta e igual à minha memória, a floresta que sempre me fizera olhar com reverência as manchas verdes dos campos. E, com essa revelação, a descoberta de que aquela senhora de nome estrangeiro era, mais do que a Sophia tão conhecida dos cultos, a minha Sophia.
IV
Se os textos de Sophia fossem um tecido, seriam linho. Não só pelo branco, como pelo trabalho que se não vê, como pelas pregas que o tempo nele inscreve sem lhe tirar a nobreza. Sobretudo porque nele nada parece estar em desacordo com o mundo. Como nesta escrita sobre a floresta. Quando voltei a ler este livro depois de saber ser ela também a autora da minha floresta, toda a noção da luz se transfigurou para mim. Aqui, as palavras já não tinham um fundo de luz verde, mas eram ainda inteiras. Era a palavra despida e essencial, “solene e rigorosa” como o próprio verbo do Padre de Varzim de “O Jantar do Bispo”. Uma palavra também ela nua, um verbo despojado e por isso mesmo verdadeiro, tão próximo do linho que toda a escrita se tornava una com o mundo. Palavras tão justas e inteiras como a lua cheia, como o mais perfeito luar.
Sempre que as releio maravilho-me com a sua capacidade de adequar as palavras ao mundo, de as usar sem as gastar, mesmo quando as repete, fazendo-nos senti-las sempre intactas, nuas e essenciais como uma intocada manhã. Tudo isso só podia nascer de uma grande e humilde atenção ao mundo. Na vontade de celebrar o clamor da vida, o coração de todas as coisas, festejado no que sempre senti como um cristianismo primordial e também franciscano. Um cristianismo político. De cidadania e responsabilidade. Um humanismo.
Nos sete contos deste livro (Contos Exemplares), sempre escritos com a mesma contenção da palavra e de todas as formas, da composição concentrada nos parágrafos breves, onde nada mais consta para além do essencial, o assunto somos nós. Nós e a coragem de escolher, de parar, olhar, agir, pensar. E essa coragem afirma-se na atenção dada aos que do mundo nada têm, estando, porém, em tudo, a ele mais intimamente ligados. Nada temos, tudo temos, o tempo é apenas curto ou é muito grande a nossa pressa de chegar. Uma pressa que nos faz perder tudo, até a nós mesmos, como em “A Viagem”. Uma voragem que nos pode fazer ficar parecidos aos que vivem do vazio, ou de criar o vazio dos outros, o que é o mesmo, como em “O Retrato de Mónica”.
São sete contos. Sete como os dias da criação. E aqui está também o mundo. Tal como nós não ousamos desafiar, tal como nós preferimos usar como pretexto de queixa a revolucionar como vontade de mudança. Nos anos 60, e ainda agora. E em todas estas páginas, com todo o sentido do mundo, brotam as palavras que continuam a emocionar-me. A inquietar-me. Como no primeiro dia.
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