[Escrevi esta estória em 1984, tinha eu 21 anos. Há poucos anos resolvi enviá-la para um concurso. Ganhou então o Prémio Literário Branquinho da Fonseca — Conto Fantástico, da Câmara Municipal de Cascais. Foi em 2007. Resolvi hoje partilhá-la aqui.]
Os Barqueiros do Rio Cheio
Dentro do mar cresce um rio imenso e maior que a solidão dos pássaros é a sede dos barqueiros, remando pelas luas.
Maior, muito maior que o canto das aves, cresce e revela-se o rio no seio do mar, inchando, subindo até à flor dos dedos, obrigando os barqueiros a remar sempre, até ao infinito, sempre, sempre. Eles não se cansam; já não são seus os braços onde navegam, cavalgam o rio como meninos levados em montadas de pau, vão subindo, galgando as águas numa loucura crescente. Depois, tudo pára. De novo chega o silêncio.
Não há vozes, só o verde antigo aflorando os olhos, povoando a alma, as mãos e os pés. São árvores, limos, o esquecimento e esses não falam, têm a voz guardada em memórias profundas como poços de muitas braças de fundura e não há balde que lhes toque o som. Os barqueiros não guardam lembranças nem sol e, se falassem, a sua voz teria o rumor do musgo.
Em certas noites, porém, ouvem-se falas sobre as copas mais altas enquanto figuras luminosas caminham entre a folhagem sem fazer ruído. Não são pássaros, nem peixes, nem flores antigas. Há quem diga serem barqueiros de outros tempos, que visitam a floresta para falar da chuva.
Quando partem, volta o silêncio. Alguns sóis passados, as nuvens sobem do mar, ocupando a enorme mancha verde com um profundo rumor. Começa com um tamborilar de gotas. Depois, durante dias a fio, caem cabelos de água, limpos e lisos, desprovidos de cor. Assim, ao rodar das primeiras noites, resvala das nuvens um barulho violento. Com o passar do tempo vai desfalecendo, tornando-se finalmente num sussurro. Volta o silêncio.
I
Andam de noite com a chuva e as marés altas. Puxados por peixes mudos que rasam a superfície e os deixam, regressando ao leito. Seguem, depois, o seu caminho na escuridão, rios abaixo, rios abaixo.
Ouvem-se vozes na alba, ainda mal se levanta o nevoeiro, como a manhã pesa de fria! O sol não rompe, o sol não rompe que a água é tanta, parece que o apaga.
Mais tarde, inundam as margens de sons húmidos, rouquidões brancas como as madrugadas, quando descem os lençóis sem sal e sem voz. E assim ficam. Há gente que fala pouco, tecendo, em cada pequeno gesto descuidado, imagens que calam as suas histórias.
Passam os barqueiros no rio, a noite é de veludo e transparece de luz. Alta fica a lua, senhora. Deslizam os barcos.
Lá vai, lá vai, os barqueiros calam tudo, até as dores dos braços de empurrar o pau. À volta ficam as árvores, mas essas parece que dormem. Eles sabem que não: conhecem-lhes a vertigem.
Vão indo, na direcção do mar, descem o rio no seu sussurro lento. Por vezes amparam-se nas margens, afundam os pés na lama, no meio da relva alta, deitam-se de costas, a olhar o céu. Fixamente. E é, decerto, como com elas, as maiores das flores. Um dia foram pássaros que, exaustos, pousaram na terra e orgulhosos viraram os olhos para o azul.
Tão alto, tão fundo!
A tontura fê-los afundar as patas na terra húmida, o susto paralisou-os, enfim, os dedos tocaram o interior do húmus, criaram-se raízes. Mudos, ergueram-se de ar sonhador, o êxtase máximo de contemplar o coalho de estrelas. Ficaram árvores.
Sim, os navegantes destas paragens conhecem bem a história. Também eles são aves, quando planam nas águas, rio abaixo. Eles conhecem a vertigem. São grandes troncos cobertos de musgo, no seu silêncio, no seu mistério. Quando falam, fazem-no como se o mundo dormisse.
II
Têm penas doiradas, abrem os bicos para beber orvalho e falar do sol. Invejam-lhe o fulgor que se desfaz em sangue e violetas quando toca o mar. São presenças tristes a quem os poetas recorrem. Os eremitas falam-lhes.
Conta-se de um poço velho na floresta onde estão adormecidos bocados das vozes destas aves. Diz-se que, um dia, um bando destes animais sem cor se sentou na beira desse poço, observando na água escura os reflexos do sol. O encanto foi tal que abriram muito os bicos. Bocados das suas vozes caíram então à água. Como eles não sabiam nadar, nada puderam fazer para os recuperar. Então, o sol decidiu enviar-lhes capas de oiro, para compensar a tristeza pela perda do seu canto. Mas os pássaros continuaram tristes.
De vez em quando, tapam os céus voando ou rasam os cursos sem sal, florestas acima, tilintando campainhas. Levam flores no bico, vão voar. Depois soltam-nas, oferecem-nas às árvores, que essas perderam as asas, são como pássaros cativos.
Os barqueiros vêem-nos passar. Sabem a sua história, conhecem além dos seus olhos o seu canto cortado. Dir-se-ia que soluçam. São aves de mágoas grandes, queriam ser o sol, invejam-lhe as rosas de sangue quando toca o mar.
Há quem diga que elas são as últimas do bando que se fez tronco e folhas. Por isso, estas nunca pousam os pés na terra, só nos ramos mais altos das árvores, ou então nas areias brancas, junto à espuma das ondas poderosas, em cujas costas vêem o entardecer vermelho e onde não crescem braços de madeira e verde. Ou, então, seguem os que navegam, adormecendo nos seus barcos.
Os barqueiros cantam baixo. Os pássaros partem de madrugada.
III
Na alba, as flores respiram a compasso, são de anil e laranja, as árvores esticam as folhas verdes e algumas flores.
Os barqueiros continuam a descer o rio, já nada resta da presença das aves aflitas, apenas os sonhos vogam ainda, na superfície cristalina, envoltos em névoa.
Quando o sol vai alto, os barcos desaparecem na luz, as águas brilham enormes, mil voos doirados nos seus gestos.
Fica no ar o zumbido das abelhas rondando o pólen. À parte isso, é o peso de uma luz branca que parece adormecida. O calor arde tanto que as árvores sufocam e transpiram.
As flores lá estão. São uma presença constante. Tão constante que cega. Por vezes, os barqueiros já nem dão por elas. Estão lá. Como também não ouvem o zumbido das abelhas, nem sentem os perfumes que adocicam a alvura. Tudo está como que desaparecido.
Eles descem a corrente, as embarcações deslizam suavemente: nada os espanta, os surpreende. Tudo é como sempre. Sem alterações, o rio segue igual a si mesmo.
Eles sabem que é outra água, que os ramos abertos estão maiores e mais próximos do sol, agora, que os pássaros doirados não são os mesmos de há luas atrás. Diriam anos. E as flores, essas, morrem como nascem e lá estão. Mas do tempo têm apenas a ideia das cores da floresta ao longo de crescentes e minguantes, as marcas que se afundam na pele e a força dos braços que já não é a mesma.
Ficam no seu balanço, olham o imenso líquido, observam-lhe os peixes girando no ventre, luzindo. Calam-se. Mal lobrigam as estrelas à noite, por entre a folhagem. Serão os peixes os seus astros, piscando. Continuam a descer o curso. Há alturas em que a chuva é tanta que apaga o brilho das escamas, as águas agitam-se e agigantam-se, saltam, parecem loucas, resvalam sobre as margens em turbilhões de lama. Nada se conta nesses dias desfeitos, não há vozes na floresta, apenas a da corrente galgando os troncos.
Quando tudo passa, os peixes aventuram-se por locais novos que a enxurrada arrancou para si. Territórios de efemeridade, marés cíclicas na terra fofa. Esses que respiram por guelras desconhecem-lhes o tempo e os limites, sabem-lhes apenas a riqueza e vão. Parece que lhes falta comer o mundo e depois morrer, deixando os olhos abertos no cristal feito esmeralda, guardados nele como pérolas apontando espuma.
Agora que os sedimentos assentaram no leito e o rio voltou ao ciclo verde escuro, os barqueiros voltam a ver os seus astros, adivinham-lhes o mover no fundo acalmado e aceitam-lhes as voltas à superfície como uma saudação. É como se neles chegasse a maresia, o mel e o fel e, feitas as contas, neles se encontrasse o balanço e deles viesse, também, o equilíbrio. Gingando na lua-cheia ou soluçando em certas marés, são corrupios, saltos que não acabam nem começam, movimentos contínuos, aqui cortados, ali retomados, lugares perdidos: só restam ecos.
Nota-se mais funda a pele precipitando-se em vales inesperados, os barqueiros já nem se espantam, já nem abrem as bocas para a água na surpresa do tempo e das marés. Eles sabem.
IV
Nada existe no interior da floresta. Por isso os homens ficam no rio com as suas casas flutuantes. Não há nada longe das águas onde o olhar se afunda. Apenas as árvores estáticas, sustentando o firmamento, encerrando o seu olhar noutros abismos.
Para lá do abraço de jade sabe-se que fica o mar. Vêm daí os peixes azuis e verdes que ninguém descobre nas águas mais escuras do que eles. Ninguém os alcança mas todos lhes sabem a existência. De lá, das vagas azuis, verdes e brancas, chegam também os pássaros aflitos, oiro que voa sempre atrás do sol. Agora lá estão, perto da maré-cheia, pousados no areal, olhando infinitamente.
As pequenas jóias de barbatanas e escamas de anil e esmeralda são folhas mortas, deveriam ser vermelhas por isso. Deveriam ser vermelhas. São elas que saltam à noite, sobre o rio, ganhando cor de sangue após o entardecer, como se morressem. Sabe-se que se transformam em libélulas, batendo asas entre os troncos, rasando os braços dos barqueiros. Voam toda a noite. Acabam por cair com a madrugada, mortas e já sem cor. Tornam-se, então, água e a ela regressam, escorrendo por entre os dedos dos homens e lá vão, de novo já como peixes, levantando os barcos nas costas, ondulando a corrente.
V
Do outro lado do maciço de árvores ergue-se a montanha. Imensa, branca no topo, calva. Também de lá correm as águas, crianças ainda, fazendo barulho, rindo. Mais abaixo, a cabeleira de folhas começa. E o rio aumenta, ganha cor, acalma-se. Mais abaixo ainda, a cabeleira de folhas impera, o rio é já adulto, vai sem pressas, de voz pausada e calma. No fim é o mar, um grito. Ou o silêncio. Talvez a paz.
No seu descer, segue como quem sonha e galga os troncos para lhes chegar aos frutos. Lá vai.
Alguém chorou na montanha, hoje pouca água, muita de outras feitas, lágrimas redondas como pérolas. O rio começa perto de um templo sem deus, onde um rouxinol canta de manhã à noite. Gorjeia o ainda ínfimo ribeiro, saindo de baixo de uma pedra, e o rouxinol canta.
É essa a memória do rio. Ele tem nos dedos um canto de rouxinol. Por isso se cala e tece.
VI
Anoitece. Erguem-se vozes solitárias na floresta. Palavras curtas. Frases breves. Até amanhã. Hoje a noite está húmida e não há lua. Ouve-se o sussurro da água deslizando. Os barqueiros recolhem. Aqui e ali há cabanas nas margens. Eles deixam as suas habitações de junco. Os pés nus já não se arrepiam e descem, atravessam a lama que toca os tornozelos. Entram em casa. Apenas umas esteiras e um tecto. Dormem.
Na manhã há frutos e água, de novo a terra molhada e algumas palavras, é o rio, o regresso aos barcos, ei-los que navegam, lá vão.
Têm mãos grandes e olhos serenos. Empurram os paus, fundo, fundo, os juncos deslizam. Vêem-se os braços nus salpicados de sol. A corrente murmura. Eles ouvem-na. Seguem-na.
Têm mãos grandes e olhos serenos.
VII
Às vezes aparecem cavalos. Galopam até ao vale, vindos do alto da montanha, quedam-se impedidos à entrada das árvores. São animais grandes, não passam por entre a folhagem, ficam a olhar a luz verde lá dentro.
A floresta começa de repente, os cavalos quase se assustam, levantam-se nas patas traseiras, relincham. Voltam para onde cada uma das plantas tem mais terreno próprio, regressam ao cimo, deixam o vale. São animais grandes. Por vezes sobem a montanha até ao topo calvo, ganham asas, também eles voam. Planam em círculos sobre a nascente. De tão brancos parecem bolas de algodão suspensas no ar. Alguns aí ficam até morrer. Outros reencontram o chão, perdem o voar, retomam o caminho da floresta para ficar à entrada, a ver a luz verde lá dentro.
Das nuvens se sabe serem os que vogaram no azul até ao fim. Fazem-se água, são eles quem chora, são o rio que vai, depois, atravessar a floresta na sua luz verde.
Os outros descem, perdem as asas, voltam à orla da floresta para ver o futuro.
O rio corre. Corre sempre. Vai descendo.
Fascinei-me!
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