E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Carta 9: Algumas outras inquietações

Não tenho uma memória dourada da minha infância. Não que tenha tido uma infância infeliz. Pelo contrário. Acho mesmo que tive uma infância boa. Entre outras coisas, incluindo as essenciais (saúde, família, casa, comida), tive por perto vários contadores de estórias. Os meus dois avôs, a minha tia Rosa, o meu pai. A minha mãe também, sobretudo a partir de livros. Os outros eram mais dados à tradição oral. E à encenação do contado.
Também conheci alguns mentirosos compulsivos. Que é, como se sabe, uma maneira de contar estórias. Às vezes tinham graça. Outras vezes não tinham graça nenhuma. Mas desses falarei (notem o verbo, tão desadequado ao silêncio apenas cortado pelos meus dedos que teclam...) noutra ocasião. Agora irei contar-vos outras coisas. Outras memórias. De como a minha infância foi também povoada de medo.
Como todas as crianças, penso eu, a minha imaginação era a minha principal inimiga. No corredor da casa dos meus pais, a casa da minha infância, havia muitas portas e pouca luz. Ao fundo, um roupeiro enorme, com três portas que, com o tempo, foram deixando de fechar completamente, anunciava mais perigos. Monstros e afins.
No meu quarto, a primeira porta à esquerda assim que se entrava no corredor, havia outro roupeiro e, naturalmente, o problema repetia-se. Além disso, os cortinados pesados e opacos poderiam sempre esconder presenças mal intencionadas. Como se isso não bastasse, havia o medo do escuro, o dos monstros atrás da porta — o que me levou a desenvolver a célebre técnica dos desenhos animados de abrir a porta com toda a convicção, para esborrachar, sem apelo nem agravo, qualquer monstro parvalhão que se escondesse nesse espaço — e, pior que tudo, crocodilos debaixo da minha cama.
Nunca consegui explicar por que razão haveria eu de ter crocodilos debaixo da cama. Ainda hoje não sei se tal fenómeno se deveria ao meu fascínio por um livro de répteis, ou se por causa do Peter Pan e do crocodilo que tinha tragado, com tanto apetite, a mão do capitão Gancho.
Como se isso não bastasse, também, o prédio em que nós vivíamos ficava mesmo em frente a uma quinta de árvores altas e frondosas. Nas sombras que nela se avolumavam com o cair do dia via eu o território ideal para a proliferação de monstros da pior espécie.
A ajudar à festa, a minha tia Justina gostava de me aterrorizar, confirmando os meus piores receios. Como, nesses anos, eu era uma niquenta de primeira água, ela ameaçava o meu sossego garantindo-me que, à noite, os lobos que viviam na quinta se enfiavam nas escadas do prédio determinados a perseguir e  mesmo a comer os miúdos que não se tinham alimentado em condições.
À noite, depois de deixar os meus pais na sala, eu avançava desesperada a caminho do corredor. Tinha de passar pela porta de entrada e escutava, paralisada, o que me parecia ser o evidente indício da presença dos lobos subindo as escadas ou rondando já a minha porta. Depois, avançava pelo corredor, tentando, a todo o custo, não olhar para as portas do roupeiro do fundo, por entre cujas aberturas temia ver já os olhos vermelhos das bestas, esperando a minha passagem. Transposto este obstáculo, abria a porta do quarto, tacteava a parede para acender a luz e empurrava a porta com toda a alma. Uma rápida olhadela pelo quarto confirmava que estava livre de animais selvagens. Nos dias mais afoitos, chegava a baixar-me para verificar bem por baixo da cama e mesmo atrás dos cortinados. Mas nos dias mais difíceis, deixava, porém, por verificar esses espaços menos visíveis. Despia-me o mais rapidamente possível, enfiava o pijama e saltava do cadeirão para cima da cama como se passasse de uma embarcação para outra, num rio ou num mar pejado de monstros de bocas abertas desejosas de me filarem a dentuça.

Fora de casa, os medos tinham outros contornos e as ameaças outros rostos. Podiam ser os dos miúdos ou miúdas que gostavam de exercer o seu domínio sobre os outros (eu estava incluída entre esses "outros" que, com alguma frequência, levavam umas chapadas sem perceber porquê), podia ser a professora da primária, a tal Rita de que ainda voltarei a ocupar-me, podia ser muita coisa.
Em resumo, as memórias da minha infância só são douradas na luz que certos dias guardavam. Por isso, discordo da minha amiga Ana Barata quando diz que a infância é o melhor tempo da vida. Onde ela vê inocência e liberdade, eu vejo ignorância, medo e dependência. Tal como em relação à adolescência, gostei de ter passado por lá (aliás, que alternativa haveria?) mas estou sobretudo contente de ter(em) ficado para trás. Não sou nostálgica em relação ao passado. Não como um todo.

Estas memórias têm sido ultimamente avivadas pelo facto de andar a ler sobre a Paula Rego e a ver imagens de obras dela. Ainda eu não tinha começado a estudar história da arte e já gostava do trabalho dela. Não porque o achasse "bonito", mas porque o achava inquietante. As primeiras obras que vi dela foram as óperas. Já foi há muito tempo. Mais tarde, conheci a série do Macaco Vermelho. E depois outras obras. A série das miúdas a brincar com os cães. E depois outras. Muitas. Em todas elas eu reconheci partes da minha infância. Das estórias contadas ou dos terrores vividos. A Paula Rego disse-me, com essas obras, que eu não era esquisita por achar que a infância não é uma época dourada. O medo a que ela deu face pintando, como disse Alberto de Lacerda, era também, em muitos aspectos, o meu. Mesmo que eu nunca o tenha pintado.

Sem comentários:

Enviar um comentário

A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.