E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


domingo, 29 de agosto de 2010

Carta 8: A descoberta da inquietação

 [Nestes dias em que as florestas ardem, interminavelmente...]


I
Quando eu era miúda, uma pessoa, de quem recordo apenas o gosto com que abria os livros e nos lia estórias, leu um dia um texto que marcou para sempre o meu imaginário de floresta. Eu não sabia o nome do autor, nem o título da obra, mas nada disso importava. Aquela imagem de uma luz verde perfeita, de um lugar mágico, onde eram possíveis encontros poderosos e verdadeiros, morada de amigos e anões, mundo fabuloso onde as noites eram profundas e perigosas e os dias misteriosos e excitantes nunca mais me abandonou. Até hoje. Mesmo sem saber quem teria escrito aquela estória com a qual eu percebi que a literatura (mesmo que ainda não conhecesse a palavra) era a coisa mais mágica do mundo.

II
No ano lectivo de 1973-74, estava eu no ciclo preparatório e a disciplina de Moral e Religião era ainda obrigatória. Alguns colegas queixavam-se da matéria, triste e aborrecida. Na nossa turma, um professor pouco ortodoxo escolhera, contudo, um método infalível de nos apaixonar e inquietar. Em vez de nos oferecer mandamentos e imperativos, deu-nos a ler um livro pequenino, de capa branca com ondas azuis, onde se podia ler “Contos Exemplares”. A autora tinha um nome cheio de consoantes. Chamava-se Sophia de Mello Breyner Andresen. Pensei que era estrangeira. Mas pensei nisso muito pouco. E dediquei-me a ler o livro. Nas aulas, lemos e discutimos sobretudo um dos contos. Chamava-se “A viagem” e com ele eu descobri que a literatura (então já tinha ouvido a palavra mas ainda não a entendia bem) podia também ser muito inquietante. Desde esses dias, nunca mais deixei de saber onde estava esse livro. E voltei a ele muitas vezes.

III
Num dia incerto da minha adolescência, a minha irmã chegou a casa com um texto que achara lindíssimo. Tinham-no lido na escola e ela vinha partilhá-lo comigo. Falava de uma Vanina, de Veneza e de um amor com um homem com nome de vento. Ou de vela enfunada. Guidobaldo. Ficámos ambas maravilhadas. E quando eu vi o nome da autora, fiquei muito surpreendida: era a mesma escritora do meu livro inquietante, do meu livro de tantas leituras.
Como podem imaginar, na seguinte Feira do Livro, comprei todos os livros dessa escritora que constavam da edição Fiqueirinhas. O primeiro que li foi “O Cavaleiro da Dinamarca”, para reencontrar Vanina e o seu amor. Depois, “A Fada Oriana”, e por aí fora, até esse misterioso livro que tinha um título que mexia comigo ao ponto de eu ter receio de o ler. Chamava-se “A Floresta”. Quando finalmente o abri, foi como se reencontrasse um velho amigo, um rosto da minha infância que me tivesse sorrido como mais ninguém e do qual eu, por infeliz acidente, tivesse esquecido o nome. Ali estava, intacta e igual à minha memória, a floresta que sempre me fizera olhar com reverência as manchas verdes dos campos. E, com essa revelação, a descoberta de que aquela senhora de nome estrangeiro era, mais do que a Sophia tão conhecida dos cultos, a minha Sophia.

IV
Se os textos de Sophia fossem um tecido, seriam linho. Não só pelo branco, como pelo trabalho que se não vê, como pelas pregas que o tempo nele inscreve sem lhe tirar a nobreza. Sobretudo porque nele nada parece estar em desacordo com o mundo. Como nesta escrita sobre a floresta. Quando voltei a ler este livro depois de saber ser ela também a autora da minha floresta, toda a noção da luz se transfigurou para mim. Aqui, as palavras já não tinham um fundo de luz verde, mas eram ainda inteiras. Era a palavra despida e essencial, “solene e rigorosa” como o próprio verbo do Padre de Varzim de “O Jantar do Bispo”. Uma palavra também ela nua, um verbo despojado e por isso mesmo verdadeiro, tão próximo do linho que toda a escrita se tornava una com o mundo. Palavras tão justas e inteiras como a lua cheia, como o mais perfeito luar.
Sempre que as releio maravilho-me com a sua capacidade de adequar as palavras ao mundo, de as usar sem as gastar, mesmo quando as repete, fazendo-nos senti-las sempre intactas, nuas e essenciais como uma intocada manhã. Tudo isso só podia nascer de uma grande e humilde atenção ao mundo. Na vontade de celebrar o clamor da vida, o coração de todas as coisas, festejado no que sempre senti como um cristianismo primordial e também franciscano. Um cristianismo político. De cidadania e responsabilidade. Um humanismo.
Nos sete contos deste livro (Contos Exemplares), sempre escritos com a mesma contenção da palavra e de todas as formas, da composição concentrada nos parágrafos breves, onde nada mais consta para além do essencial, o assunto somos nós. Nós e a coragem de escolher, de parar, olhar, agir, pensar. E essa coragem afirma-se na atenção dada aos que do mundo nada têm, estando, porém, em tudo, a ele mais intimamente ligados. Nada temos, tudo temos, o tempo é apenas curto ou é muito grande a nossa pressa de chegar. Uma pressa que nos faz perder tudo, até a nós mesmos, como em “A Viagem”. Uma voragem que nos pode fazer ficar parecidos aos que vivem do vazio, ou de criar o vazio dos outros, o que é o mesmo, como em “O Retrato de Mónica”.
São sete contos. Sete como os dias da criação. E aqui está também o mundo. Tal como nós não ousamos desafiar, tal como nós preferimos usar como pretexto de queixa a revolucionar como vontade de mudança. Nos anos 60, e ainda agora. E em todas estas páginas, com todo o sentido do mundo, brotam as palavras que continuam a emocionar-me. A inquietar-me. Como no primeiro dia.

 [Este texto foi escrito a 7 de Março de 2004. Com grande pena minha, nunca consegui dizer a Sophia o quanto a sua escrita me foi e é preciosa.]







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A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.