E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


domingo, 22 de agosto de 2010

Carta 5: As férias grandes. I

Apesar de gostar da escola, as férias eram sempre apetecidas. Em especial, claro está, as férias grandes, porque pareciam sempre a perder de vista. Lembro-me delas em vários momentos, e sempre associadas a apontamentos dos sentidos.
Cinco anos, Seixal. Em 1968 usavam-se cores fortes. Eu tinha uma mini-saia amarela, com um tecido texturado, que usava com uma blusa de linha. Nessa blusa, além do lilás vivo de base, havia linhas de um amarelo igualzinho ao da saia, e outras cor-de-laranja e verde alface. Era uma blusa divertida. A mistura das cores era fantástica e eu sentia-me mesmo feliz quando vestia aquela saia com aquela blusa. As cores pareciam prometer dias de brincadeira, solares e animados. Nesses dias, depois do almoço, havia sempre alguns momentos de silêncio. O calor da tarde subia nas ruas e nós ficávamos (as minhas amigas e eu) a brincar nas escadas das casas delas, aonde o sol não chegava e, por isso, estava mais fresco. Em cada degrau construíamos uma parte da casa: o quarto, a cozinha, a sala. Colocávamos os brinquedos em lugares estratégicos (sempre ao canto dos degraus, não fosse algum vizinho precisar de passar) e ali ficávamos enquanto o sol estava mais a pino. De vez em quando, o meu avô vinha à rua e deitava um balde de água sobre as pedras da calçada. O cheiro da terra molhada refrescava o ar e por momentos parecia que estávamos noutro sítio, todos os cheiros subjugados àquele mais forte. Ao fim da tarde, com o sol já mais deitado sobre o rio Judeu, a então vila ficava mais fresca. E nós saíamos para a rua, para brincar às escondidas, à cabra-cega, ao apanha, à macaca, saltar à corda... A rua já tinha mais gente e as cores começavam a alterar-se, porque a luz ia mudando, puxando um pouco a noite. Com sorte, jantávamos e vínhamos outra vez para a rua. Já com as luzes acesas, as brincadeiras tornavam-se ainda mais mágicas.
Outra memória de 1968, Seixal. Às vezes, ficava à tarde em casa, com a minha avó. Sobretudo quando ela estava a passar a ferro. Sempre associei o passar a ferro a um trabalho simultaneamente mágico (ela fazia aquilo com enorme perícia e todas as rugas da roupa desapareciam) a um esforço desmesurado e profundamente incomodativo. Quando eu tinha cinco anos, o ferro da minha avó era ainda antigo e muito pesado. Fazia um ruído forte ao ser pousado na base. E da roupa erguia-se um calor que, misturado com as bolhas de sol que entravam pela janela da sala, parecia tomar conta do ar e tornar tudo sufocante. A complicar essa sensação, um rádio roufenho ia tocando músicas opressivas: "Povo que lavas no rio" é uma das minhas memórias. "Que talhas com o teu machado, as tábuas do teu caixão"... O peso dessas músicas era tremendo. No meio da madeira escura dos móveis, do calor do ferro e dos jorros de sol, era impossível não sentir aquela actividade (de passar a ferro) uma espécie de condenação à tristeza, à sujeição. No meio dessas músicas pesadas, de vez em quando ouvia-se um êxito estrangeiro. Umas vozes de homem cantavam, em inglês, uma coisa incompreensível, mas que tinha um refrão que ficava no ouvido: "Ob-la-di, Ob-la-da". Nunca poderei agradecer a esses rapazes esses momentos de frescura que me davam, na minha infância, em pleno Verão.
Mais uma memória de 1968, Lagos. Quando, finalmente, os meus pais tinham férias, íamos para Lagos. Para mim, nesses anos, o Alentejo era um território equivalente ao Oeste Selvagem dos filmes americanos. Mesmo sem índios nem cowboys, era um lugar que eu considerava inóspito e que apenas constituía um obstáculo imenso, infindável, que se interpunha entre mim e Lagos. Com uma frequência que eu achava discreta mas que devia ser bastante incomodativa, ia perguntando o clássico "falta muito?".
Ao passar a ponte da ribeira de Odesseixe, que separa o Alentejo do Algarve, o meu pai lançava sempre uma buzinadela de saudação. A minha alegria subia de tom: tínhamos ultrapassado o Alentejo e estávamos, finalmente, no Algarve!
Quando, depois da serra, se avistava Bensafrim, eu já me sentia mais perto de casa. Não sei porquê, mas apesar de eu não ser exactamente de lugar nenhum (nasci em Lisboa, mas nunca lá vivi; vivi no Seixal até aos 15 anos, mas também não era de lá, como sempre me fizeram sentir; depois vim para Almada, mas também não é a minha terra...), foi sempre em Lagos que me senti verdadeiramente em casa. A chegada a Lagos era sempre uma festa.  Passávamos a entrada da cidade, e íamos seguindo para o centro. Dentro do carro, adensava-se o silêncio, como se quiséssemos chegar sem ser notados para melhor surpreender os meus avós. Subíamos a rua de S. Sebastião, esperando que nenhuma das minhas tias estivesse à janela. Na maior parte dos casos, não tínhamos essa sorte, porque havia sempre alguma delas que, esperando já a nossa chegada, espreitava a rua para nos ver chegar. Mas, de vez em quando, eu tinha uma aberta. Saía do carro, assim que o meu pai o estacionava, e precipitava-me para a porta, em passos de gato, só sossegando quando agarrava o batente em forma de mão fechada e o despedia, com força. Uma, duas, três vezes.
A luz inundava a cidade e batia em chapa na parede de cal da casa dos meus avós. Vinda, por fim, lá do fundo, dos lados da cozinha, ouvia-se uma voz, por vezes duas, e logo a porta era aberta.
As minhas memórias de Lagos têm muitos contornos e acumulam-se desde muito cedo. O perfume das estevas (uma memória poderosa que me faz, ainda hoje, abrir a janela do carro mal chego ao Algarve, para recuperar esse perfume), da cal, da terra, dos figos, do mar. A luz bailando sobre as ondas da Meia-Praia, na preia-mar. A água envolvendo-me os tornozelos enquanto me contorcia na apanha das condelipas. O abraço das águas quando nadava. O toque da areia fina e branca. E, dentro de casa, os cheiros da comida, o sabor das papas de milho, da sopa de feijão com massa, o ranger das cadeiras dos meus avós, o contraste de luz e sombra no pequeno jardim carregado de rosas e por onde passeava pequenos gatos esquivos.
O Verão era, assim, a perder de vista. Nesses anos, eu ainda me sentia feliz nessa imensidão.

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A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.