E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


sábado, 28 de agosto de 2010

Carta 7: As férias grandes. III

A partir do momento em que aprendi a ler, a minha vida mudou. Não de um dia para o outro, é claro. Mas mudou, imperceptivelmente. Primeiro, foram as tentativas de escrever. Mais do que as cópias e os ditados, mais do que as redacções, o que foi importante foram as experiências a que hoje se chamaria, provavelmente, "criativas" mas que naquela altura, para mim, eram apenas jogos. Os primeiros jogos foram quadras. Era fácil rimar desde que as palavras terminassem em... "ar". Isso significava uma assustadora recorrerência a verbos da primeira conjugação e, sobretudo, a frases esquisitas, com o verbo no fim. Mas a diversão era a regra e, para mim, com 7 ou 8 anos, funcionava à maravilha.

Depois, foi a descoberta dos livros. Algumas estórias, mas, sobretudo, uns maravilhosos livros sobre os índios da América do Norte, sobre dinossauros, sobre a lua... O meu fascínio pelos dinossauros acabaria por desaparecer, mas o dos índios ficaria para sempre. Primeiro, porque um dia, ao ver um filme de cowboys, fiquei escandalizada com a brutalidade dos índios. E, no instante em que manifestei o meu choque, ouvi o meu pai dizer: "Sabes que eles estavam a defender a sua terra? Os brancos chegaram lá muito depois e roubaram-lhes as terras. Os índios é que são os verdadeiros americanos." Escusado será dizer que se tornaram para mim uma espécie de Viriatos lutando contra os romanos, e portanto nunca mais olhei para o John Wayne da mesma maneira. E quanto à lua? Bem, posso dizer que, não sei como nem porquê, mas sei sempre em que fase é que ela se encontra.

À parte os livros que havia lá por casa, sobretudo clássicos, quando acabei a quarta classe, o meu pai resolveu um dia iniciar-me em literatura para a minha idade. Lembro-me de ter entrado com ele numa papelaria/livraria em Almada e de ele ter pedido ao balcão (nesses anos, os livros ainda eram pedidos ao balcão, assim como quem vai hoje à farmácia e pergunta se há alguma coisa para as cãimbras) "uns livros aqui para a minha moça". A empregada veio de lá com dois volumes salteados dos Cinco. Se não me engano, eram "Os cinco e os contrabandistas" e "Os cinco e a ciganita".
Eu tinha 10 anos. Lembro-me de que, quando os folheei, fiquei inquieta com o facto de quase não haver bonecos. Tantas páginas! Mas ao fim do primeiro volume lido a uma velocidade que eu nunca pensara possível, o segundo, ainda invicto, já me sabia a pouco. Então, e depois? O que é que eu ia fazer?
A colecção completa foi uma consequência lógica e os 21 livros foram lidos e relidos vezes sem conta, ao longo da minha puberdade e adolescência... e ainda aos vinte e poucos anos. O meu favorito absoluto? "Os cinco voltam à ilha". Li-o mais de vinte vezes, quase o sabia de cor. Ainda hoje me lembro de a cozinheira Joana ter sido substituída por uma cozinheira horrível, com um marido de má catadura, e um filho chamado Edgar, que os "meus" amigos Zé, Ana, Júlio, David (e Tim) conheciam como o "estúpido garoto". Foram esses livros que me lançaram no prazer da leitura e, além disso, ainda me ajudaram a gostar de comer.
Acho que isso aconteceu a muita gente da minha geração. Graças a eles e a outras criações da genial Enid Blyton fiquei eu a dever o crescimento com o gosto da descoberta da comida. Mas também o prazer dos mistérios, do companheirismo, da aventura, das férias com os amigos. A propósito: acabei de reler (comprei para mim) os dois primeiros volumes das Gémeas em Santa Clara. E, sim, ainda foi uma festa!
Os livros passaram a ser os meus grandes companheiros nos longos meses das férias grandes e foi a partir dessa altura que eu deixei de poder sair de casa sem um livro na mala.
Entretanto, tinha chegado ao primeiro ano do ciclo. A escola deixou de ser no Seixal e passou a ser em Almada. E, na minha turma, nesse ano lectivo de 1973-1974, em que pela primeira vez na escola se haviam misturado, experimentalmente, raparigas e rapazes, havia um grande prazer partilhado: a leitura.
Os furos eram passados na biblioteca, lendo ao despique, a ver quem preenchia mais cartões de leitor e quem sabia mais estórias. Uns meses depois, a meio do segundo período, deu-se o 25 de Abril.
A emoção desse tempo foi medida por nós como uma oportunidade de escrevermos as nossas próprias estórias de mistério. Aos Cinco, aos Sete, juntámo-nos nós. Escolhendo sempre lugares diferentes, recantos sombrios da então chamada Escola Preparatória de D. António da Costa, em Almada, sempre que havia um furo já não era a biblioteca que nos chamava, mas esses espaços só nossos, onde o nosso grupo (primeiro de cinco e depois de sete elementos) se juntava para ler em conjunto as estórias escritas por nós.
As férias grandes tornaram-se, por essa altura, épocas em que apenas os livros me mantinham perto dos meus amigos. No Seixal, na rua da casa dos meus avós, os meus antigos companheiros de brincadeiras não liam esses livros. Fiquei sozinha com eles. E com uma outra coisa que entretanto passara a fazer parte de mim. A "mania" de escrever.

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A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.