E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Carta 6: As férias grandes. II

Durante alguns anos, depois de Lagos, vinham as termas. Nas Caldas da Felgueira. Lá não havia praia, mas o Mondego passava muito perto, miudinho e terno. E era nas suas águas rumorosas que eu mergulhava os pés e andava, encantada, sobre calhaus brancos e polidos. O Mondego tornou-se, por isso, muito antes de Camões e dos fados de Coimbra, a par do Tejo, o rio da minha infância. Não o Mondego de Coimbra, já pujante e adulto, mas o rio pequenino cujas águas me bordejavam os tornozelos.
Das termas, lembro-me sobretudo do silêncio, do meu pai a chegar dos tratamentos à asma todo envolto em roupa e toalhões, mesmo sob o calor de Agosto, das horas das refeições no restaurante da pensão. Quando era pequena não gostava especialmente de comer. Gostava de algumas coisas, claro, mas não era uma criança com apetite, digamos de modo simples e sem entrar muito no campo das neuras que seguramente causei aos meus pais e aos meus avós... Mas sempre me encantou ver servir a comida. No restaurante da pensão havia ainda o hábito de servir a comida com duas colheres, presas entre três dedos da mão. Todos os empregados sabiam fazê-lo, mas havia um, um senhor mais velho, alto e magro (de acordo com a minha memória dos 5, 6 anos...) que o fazia com excepcional facilidade e elegância. Eu adorava olhar para as suas mãos, enquanto ia retirando os elementos da refeição de uma grande travessa que segurava sobre o braço esquerdo e os ia distribuindo pelos pratos: arroz, batatas, legumes, carne, peixe... o que fosse. No fim, o molho era sempre um momento especial, dispensado num gesto largo e certeiro...
Cá fora, a luz — menos branca do que em Lagos — e coada pelas árvores caía sobre nós apenas de manhã e ao final da tarde. Depois do almoço, com a excepção dos dias em que os meus pais se propunham passear, lembro-me sobretudo da obrigação da sesta, um hábito que então me irritava e que agora lamento ter-se perdido no tempo.
Ao fim da tarde, as senhoras sentadas à sombra conversavam enquanto faziam renda ou, nesse final de década, se dedicavam à elaborada técnica do macramé. Foi o triunfo dos sacos. Toda a gente fez os seus. Até os meus pais. Sim, os homens também eram envolvidos no processo, sempre que se precisava de maior força em alguns nós.
Dos serões lembro-me de pouco. Não havia passeios na avenida como em Lagos, nem idas à esplanada. Depois de algum tempo a passear nas cercanias ou na sala da pensão, eram horas de dormir.
As termas deixaram-me uma memória de inacção que, com o passar dos anos, se tornou sedutora e se transformou numa promessa de sossego, silêncio, paragem. O meu reino por umas termas!
Agora chamam-se SPAs e tornaram-se finas. Naquele tempo, o perfume que mais se sentia não tinha ares de cosmética, mas de saúde. Cheirava a água. E, sim, a água tem cheiro. Como tem gosto. Como tem alma. Quem não souber isso, nunca bebeu realmente um copo de água. O que é uma pena.

As nossas idas para as termas duraram alguns anos, mas depois os meus pais deixaram de ir e as férias grandes passaram a decorrer simplesmente em Lagos. Um mês inteirinho de praia! Para mim, era uma felicidade.
Com o passar dos anos, também, as memórias das Caldas da Felgueira tornaram-se mais nostálgicas. Mas, durante anos, muitos anos, não voltei.
O ano passado, a caminho de Gouveia, quando fui receber o Prémio Vergílio Ferreira, desligámos o gps e seguimos por uma estrada secundária. Sem saber exactamente onde estava, comecei a contar as minhas memórias da Serra da Estrela, do Mondego, de como lá brincava andando dentro de água sobre as pedras brancas, de como o rio corria perto da pensão, das termas. Contei que há muitos anos que lá não ia. E comentei que gostaria de lá voltar. Que era um sítio parecido com aquele onde estávamos. Que, de algum modo, aquele lugar que eu não sabia exactamente qual era, me parecia familiar. E, de repente, apareceu uma tabuleta: "Caldas da Felgueira". Eu nem queria acreditar. Passaram-se mais de trinta anos. Está tudo muito mudado. Mas, de repente, numa curva, lá voltei a ver o Mondego, pequenino e rumoroso, passando ainda tão miudinho como quando eu lá molhava os pés. Eu sei, como o velho grego, que aquele já não é o Mondego da minha infância. Mas, como diria o Pessoa, aquele é o Mondego da minha infância.
Os rios seguem-me, por onde eu ando, como eu sigo o mar, sempre que posso. Eles fazem parte da minha memória, do meu corpo, do meu tempo. Por isso, há uma frase que escrevi há mais de vinte anos e que, com alguma regularidade, reaparece noutros textos, noutros livros. O rio segue, segue sempre, sem parar.

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A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.