E se?

E se envelhecer for uma glória? 
E se o tempo espelhado, gravado, inscrito sobre a superfície do nosso corpo for o mais notável testemunho do quanto vivemos? Do quanto fruímos, sofremos, rimos e amámos?

Para quê passar a vida a tentar manter intacta a juventude, quando o único modo de ela permanecer intocada é preterir o tempo em troca de uma eternidade que tudo consome?


quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Carta 4: Os instrumentos da escrita

Acho que as minhas primeiras letras foram desenhadas na areia da praia. Muito provavelmente, na Meia Praia, em Lagos. A minha mãe ia desenhando as letras e ia-me desafiando a uma decifração que tardava. Porque, apesar de eu ter muita pena de não saber ler (segundo me contou, muitos anos mais tarde, a minha avó materna, que era analfabeta e também não podia ajudar-me com as legendas dos filmes), a verdade é que não parecia demonstrar qualquer talento para a coisa. A minha mãe desenhava letras avulsas e depois sílabas e depois palavras pequenas e fáceis. Mas eu distraía-me e esquecia-me e ela exasperava. "Estúpida! Nunca hás-de aprender a ler!", desabafava ela. Sinceramente, não me lembro de nada disto. Portanto, não ficou qualquer trauma, pelo menos que me apoquente. Ela é que o recorda e, parece-me, com algum sentimento de culpa. Escusado, no entanto, porque o amor dos pais é, muitas vezes, apressado e quer ver resultados gloriosos nos filhos. O que raramente acontece, suspeito. Comigo, seguramente, e na qualidade de filha, não aconteceu.
Do que me lembro desses dias, é do prazer do contacto das mãos com a areia. Desenhar letras era um modo de desenhar, simplesmente. E de tirar um prazer táctil do mundo, ao mesmo tempo.
As letras seguintes vieram com a escola primária, para onde eu fui com uma intensa alegria. Pelo menos, é o que agora recordo. A minha primeira professora chamava-se Zélia, era alta e elegante e tinha o cabelo preto e os olhos azuis. Era uma algarvia de Loulé, que tinha três filhos e era tão rigorosa como doce. Um equilíbrio que nos levou a todas (digo todas, porque, nesse tempo, a nossa escola era a das miúdas. E éramos 44 numa sala) no fio das linhas e nos ensinou a ler e a escrever. Nesses anos, escrevia-se a caneta de tinta permanente e apurava-se a caligrafia em cadernos de duas linhas. Eu tinha uma relação de amor-ódio com esses instrumentos. Por um lado, a caneta deixava um rasto de brilho atrás de si. O azul profundo da tinta convidava por vezes mais à pintura do que à cópia. E as duas linhas do caderno, conduzindo a mão, lembravam que a escola era um sítio para trabalhar, não para brincar. Mas, ainda assim, o prazer acabava por se misturar na obrigação.

No segundo ano, a Professora Zélia foi-se embora porque alguns pais, mais dados ao rigor físico do que aos encantos da aprendizagem, fizeram queixa dela e calhou-nos depois uma herdeira dos métodos da Inquisição, que claramente gostava de torturar criancinhas e distribuía, com grande ligeireza e frequência, chapadões e ponteiradas. A caneta de tinta permanente tornou-se, por esses tempos, um reflexo penoso dos meus medos. As mãos jorravam água, constantemente. E a mão direita parecia que tinha mesmo uma ligação directa à torneira. As minhas folhas de caderno evidenciavam bem isso, com ondulações do papel e manchas de tinta. A caligrafia, que nunca fora das mais elegantes, transformou-se num retrato expressionista do pânico em que eu (como todas nós) vivia. Sempre que podia escrever a esferográfica, aliviava um pouco.
A única coisa boa dessa professora, em termos de escrita, foi, no terceiro ano, ter lançado uma proibição de começar as redacções por "era uma vez". Passado o susto inicial, lá consegui encontrar fórmulas alternativas: "Certo dia", "Um dia", "Numa ocasião", "Antigamente", "Há muito tempo"... Se o gesto não foi encorajado à descontração, pelo menos esse repto teve alguma coisa de libertador.

Durante anos, os meus instrumentos da escrita mantiveram-se esses: canetas e esferográficas. Em relação às primeiras, recordo uma prenda do meu avô Manuel, quando acabei a primeira classe: uma caneta de tinta permanente, verde escura. Com um belo apáro. Depois, tive outras. Muitas, porque são lindas e escrevem maravilhosamente. Mas essa é minha decana. Embora a minha preferida, pelo seu magnífico apáro e pelo design sem máculas, seja a Parker 21. Há uns anos, o meu pai deu-me a sua. É a jóia da minha ínfima colecção.

De preferência com cores diferentes e sempre muito próximas do desenho, da aguada, do sombreado. Durante algum tempo, até desenhei mais do que escrevi. Por não ter dinheiro para oferecer uma prenda de aniversário a um amigo, resolvi fazer-lhe um retrato a carvão. Descobri nessa altura que não apenas era capaz de o fazer, como passei a olhar para esse amigo de outra maneira. Essa descoberta de um outro tipo de escrita foi muito importante para mim. Durante anos, fiz os retratos de quase todos os meus amigos. Parecia que só os via bem depois de a minha mão lhes ter tomado os traços. Descobri que o desenho era a forma mais fiel de compreensão. A que revelava não apenas a cara do outro, mas, sobretudo, o modo como eu me apercebia da sua personalidade.
Mas, aos 20 e poucos anos, deixei de desenhar. Os instrumentos passaram, por isso, a ser apenas usados para o outro alfabeto. Entretanto, tinha entrado em cena, na minha vida, a máquina de escrever. Como instrumento, era muito cinematográfico. Imaginava-me, projectando-me no futuro, sentada a uma velha mesa, em frente à máquina, a escrever romances. À minha esquerda, abrindo-se sobre o horizonte, uma janela mostrava-me o mar. Escusado será dizer que essa minha casa era edificada sobre uma duna. Naturalmente, na Meia Praia. Inspirada nas casas que, pouco antes, aí se tinham erguido para os pescadores, eu antecipava uma vida com atmosferas húmidas e frias, rodeada de mar e livros. E com o barulho das teclas, pontuado pela campainha do final da linha.
O futuro não foi nada disso. E ainda bem, porque o sossego que então havia na Meia Praia desapareceu engulido pela voragem dos construtores. Mas, à parte o cenário, o próprio instrumento da escrita se tornou embirrante. As noitadas a passar trabalhos para a Faculdade mostraram-me o quanto a máquina era cansativa e rudimentar. Ainda pensei comprar uma nova; eléctrica e com memória. Mas, entretanto, vieram os computadores.
O meu primeiro contacto com esses "bichos" foi no CIAL, onde então dava aulas. Um dos directores da escola decidiu introduzir essa novidade e providenciar aos professores uma formação para a sua utilização. Nesse tempo de écrãs negros no qual surgiam uns símbolos verdes, nesse tempo de disquetes gelatinosas, eu achei o computador uma máquina incompreensível. Ao fim do dia, cansados das aulas e a ter aulas de informática, o resultado não podia ser brilhante. Continuei a escrever à máquina.
Em 1989, quando comecei a escrever para "O Jornal", apresentaram-me, então, um Macintosh. Gostei do nome e já achei o "bicho" muito menos críptico. Mas o meu contacto com ele foi então escasso. E continuei com a máquina de escrever e com os cadernos e as canetas.
Só em 1992, quando fui para o Público, é que percebi, realmente, as benesses dos computadores. Continuamos, claro está, a falar de um universo Mac. E, por isso, pela simplicidade da sua utilização, eu aderi de imediato. Comprei o meu próprio computador (um Mac Classic, pequenino e simpático, que ainda liga e funciona!!!) e arrumei definitivamente a máquina de escrever. Até porque, como maravilhosamente descreveu o José Cardoso Pires, o computador é uma máquina de apagar. Ora há lá coisa melhor?


O meu segundo portátil

Agora, 40 anos depois das primeiras letras na escola, a minha caligrafia está decididamente pelas ruas da amargura. Continua a ter a surpresa de, por vezes, as notas tomadas nos cadernos me sugerirem outras coisas, na modulação da palavra desenhada em liberdade. Tem uma graça relativa, é claro. Às vezes, é incompreensível. E, quando estou a trabalhar em ensaio, tenho um cuidado extra, nas citações, para não se tornarem ilegíveis depois. Ou criativas.
Por tudo isso, embora nunca saia de casa sem uma caneta e um caderno, 99% das vezes que escrevo faço-o directamente neste e com este outro instrumento. Depois imprimo, é claro, e corrijo no papel. Mas a escrita, a vários dedos, é mais rápida e acompanha mais fielmente o ritmo do pensamento.

O meu terceiro (e actual) portátil

O calo que se começou a formar no meu dedo médio da mão direita, há 40 anos, continua lá. Não desaparecerá, penso. Faz parte de mim. E, mesmo sem criar calos, o computador passou a funcionar, para mim, quase como as canetas de tinta permanente. O prazer que me dá o meu portátil, rápido e ergonómico, companheiro de aventuras e de canseiras, é parecido com o que me dá, ainda hoje, a Parker 21. É verdade que o teclado não se danifica se alguém, que não eu, o usar. (Criei fama de comichosa por não emprestar as minhas canetas. Os apáros não resistem a vários utilizadores). Mas é o meu instrumento de escrita. É meu. Só isso.

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A propósito da entrevista da Ana Sousa Dias e de mais coisas...

Como já é público, o meu conhecimento sobre os homens é muito básico. Diria, para que fiquem todos igualmente contentes, que o meu conhecimento sobre as mulheres não é muito mais substancial. Na realidade, o humano, embora não me seja estranho no seu todo, mantém sobejos mistérios. Em ambos os géneros.
Contudo, parece que algumas pessoas são mais rápidas a catalogar e a arquivar (será que também a compreender?...permito-me duvidar) do que eu. 
Uma pequena história. No dia do lançamento da "Cartografia Íntima", e estando presentes no auditório da FNAC do Colombo algumas dezenas de convidados, entre os quais eu arriscaria uns 35 a 40% do género masculino, um senhor brindou uma amiga minha com uma pergunta em tom indignado: "Isto é uma coisa para fêmeas, não é?". A minha amiga ainda respondeu com toda a simplicidade: "Não, acho que é para todos." Mas ele, olhando em volta, sentenciou em tom definitivo: "Não. É uma coisa para fêmeas!". E saiu a toda a pressa. 

Pergunta: que saberá ele das "fêmeas" que nós desconhecemos?


A propósito destas escritas

Na pasta que tenho no computador sobre os cinco sentidos, há vários documentos sobre a possível organização deste projecto. Primeiro, quando tudo começou, como um conto. Depois, como um conjunto de cinco contos. Mais tarde, como um projecto de cinco romances.
No meio desta série de documentos, as minhas notas sobre a ordem de entrada em cena dos sentidos é um dos aspectos que mais me diverte. Porque tal como se altera substancialmente o modo como, a cada momento, tentei definir as personagens, as suas biografias e simbólicas, também a ordem dos livros vai variando.
Como é sabido, a escrita tem não apenas ritmos próprios, mas também exigências particulares. E no seu labirinto de fiação, as personagens acabam por nos largar a mão.
Lembro-me sempre de dois romances da Regina Louro ("Que pena ela não se chamar Maria" e a sua sequela "À sombra das altas torres do Bugio"), em que muito claramente a personagem central se solta e chega a intervir na narrativa, interpelando a escritora. Essa tentação — que outros já tiveram mas a que a Regina dá o seu inequívoco e alucinante e contagiante ritmo — surge, no processo da escrita, com mais frequência do que se poderia pensar. Se não a de colocar a personagem a falar connosco (no sentido de ser ela a iniciar esse "chat", como agora se poderia dizer), pelo menos a de entrarmos nós logo em diálogo com ela. Às vezes, até para a pôr no lugar...
Não estou a dizer que isso vá acontecer nestas estórias. Apenas quero com isso sublinhar o modo como as personagens se autonomizam das linhas com que, no início, traçamos o seu destino. Como nos obrigam a repensar a acção a cada página, a sopesar as palavras que dizem (será que esta personagem diria isto? nesta altura, isto poderia passar-se assim? como reagiria esta personagem ou aquela a esta situação particular?), as opções que fazem.
Parte do prazer da escrita é contar uma estória. No meu caso, não sendo uma verdadeira contadora de estórias, mas uma perguntadora, a escrita é mais do que um prazer: é uma necessidade, uma função vital. Não é por isso menos estranho verificar como uma função vital nossa pode ser "habitada" por decisões que parecem obedecer a uma lógica estranha a nós (o que é diferente de dizer "a uma lógica que nos é estranha").
Com a escrita (o tempo do seu processo), "o que podia ter sido e não foi" é progressivamente apagado da memória. Aliás, uma das funções que para mim tem o acto de escrever é não apenas interrogar-me sobre algumas questões que me interessam como libertar-me dos aspectos narrativos de que elas se revestem. Ou seja, é despojar-me delas; abrir outras portas. O esquecimento faz por isso parte do processo. Abrir estos documentos do que têm sido os vários projectos destes cinco sentidos é por isso um exercício de divertimento, estranheza, surpresa e, por vezes, alívio.
O tempo — e as leituras e reflexões que ele permite — é, sem dúvida, um poderoso aliado.
Lembrei-me disto hoje, porque estando a meio do segundo volume tenho várias encruzilhadas pela frente e fui abrir esses documentos a ver se aí encontrava ajuda. Não foi pior nem melhor. O que lá está já não faz sentido. Voltei a ficar sozinha com as personagens e as suas exigências. Logo se verá o que acontece. Como diz o Javier Marías: escrevo para saber como é que a estória vai acabar. Para mim, também é um bocado assim.

Para quem ainda não leu e quiser espreitar as primeiras páginas do livro...

...pode fazê-lo em:
http://www.scribd.com/doc/12970592/Emilia-Ferreira-Cartografia-Intima-Difel-2009

E mais uma impressão sobre o livro

"Desde já  gostei muito, muito do teu romance e sobretudo do tom discreto da tua escrita.

abraço amigo

_______ ZÉ MARTO"



Muito obrigada, Zé.

E ainda mais uma impressão sobre o livro

Como não encontrei maneira de escrever no teu blog sobre a Cartografia Íntima e acabei hoje de a ler, não quero deixar de te dar os parabéns e agradecer-te a partilha do teu olhar sobre este grande novelo no qual estamos todos envolvidos. Será mais um passo certamente para reflectirmos sobre como vamos (ou podemos) deixar a nossa pele e a dos outros, esta última quantas vezes esquecida.
Quando afinal fomos deixando penduradas linhas aqui e ali, umas por esquecimento, outras por distracção, outras nem nós sabemos bem porquê. O que temos que aproveitar são estes fios que nos unem e construir (agora que estamos mais velhinhos) laços dos quais nos lembremos sempre com alegria e amor.
Bjs
A. Barra
PS: A cidade será Lagos?

E mais outra

Olá Emília
tudo bem?Quero apenas dizer-te que adorei o teu livro, de coração e com a toda a sinceridade. Parabéns.É um tipo de escrita que gosto muito, essa de se brincar com as palavras para expõr a profundeza dos sentimentos. Na verdade revi-me em muito na vida de Helena e na forma como a vida se nos escreve na pele e nos marca o coração.Já o recomendei a algumas pessoas e vou oferecer a uma amiga minha minha ah! e obrigada pelo autógrafo.
bjs e fico a aguardar o próximo

Lurdes

Últimas e próximas

Afinal, a Feira do Livro correu muito bem.
Obrigada a todos os que apareceram. E também a todos os que não puderam ir. 


Amigos:

Depois de antecipar, como pior dos cenários, a minha solidão na torreira do sol da Feira, qual Lawrence no deserto (isto se nenhum de vocês lá fosse), comecei a antecipar a possibilidade de um número à Gene Kelly. No caso, Singing in the Rain. Talvez por receio do que isso fizesse pelo livro, fui aconselhada pelo meu editor a adiar a presença na Feira para o próximo domingo 17 de Maio.
Esperemos que o tempo nos deixe fechar a Feira em beleza.
Assim que souber a hora, digo alguma coisa.
 




Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão da Difel.
Afinal, vai ser dia 9, às 17h00. Rain or shine. Contei com sol, mas parece que vai estar cinzento. Não faz mal. Lá estarei. Espero que passem por lá.  
Não se esqueçam!




Depois de uma breve conversa com a Ana Aranha, À volta dos Livros, na Antena 1, e de uma passagem pela Maratona da Leitura, na Fnac, no último dia 23, vem agora aí a Feira do Livro.
Em princípio, encontramo-nos dia 10 de Maio. Assim que souber a hora, digo-vos. Espero ver-vos por lá.